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Delito de Opinião

Os melhores ficam à margem

Dois casos emblemáticos em Portugal

Pedro Correia, 30.03.21

            Eça_de_Queirós_c._1882.jpg fernando-pessoa-l.jpg

 

Em 1887, Eça de Queiroz concorreu com A Relíquia ao Prémio D. Luís, instituído por este monarca e atribuído pela Academia Real das Ciências de Lisboa. O júri, presidido por Manuel Pinheiro Chagas (oficial do Exército e historiador menor, um homem que havia sido ministro da Marinha e detestava Eça) excluiu aquele romance, conferindo o galardão à peça teatral O Duque de Viseu, assinada por Henrique Lopes de Mendonça, oficial da Armada, contista e dramaturgo, autor da letra do actual hino nacional.

Cento e trinta e quatro anos depois, A Relíquia é um dos títulos fundamentais da ficção portuguesa do século XIX enquanto o drama de Lopes de Mendonça jaz sepultado na poeira de velhas bibliotecas.

 

Em 1934, Fernando Pessoa concorreu com Mensagem à primeira edição dos prémios literários promovidos pelo Secretariado de Propaganda Nacional. O júri, presidido por António Ferro, elegeu A Romaria, de Vasco Reis (pseudónimo do padre franciscano Manuel Reis Ventura), como melhor livro de poesia do ano, atribuindo-lhe o Prémio Antero de Quental, enquanto relegava a obra de Pessoa para uma "segunda categoria" com valor pecuniário cinco vezes inferior. Ferro, que presidia ao júri por ser director do SPN, não votou: só lhe caberia escolha num eventual caso de empate. Três dos quatro restantes membros - Alberto Osório de Castro, Acácio de Paiva e Mário Beirão - optaram por Reis (pelo menos dois deles detestavam Pessoa e não guardavam segredo disso). A única mulher com voto, Teresa Leitão de Barros, ficou isolada ao enaltecer a «beleza literária» dos versos pessoanos.

Oitenta e sete anos depois, a Mensagem é um dos títulos fundamentais da poesia portuguesa do século XX enquanto a lírica de Reis desapareceu do mapa e hoje só é lembrada por este triste exemplo de miopia de um júri literário.

 

Lembro-me sempre destes dois casos cada vez que oiço falar na atribuição de prémios. Tantas vezes os juízos contemporâneos acabam por distinguir e enaltecer a incompetência. Muitas vezes estas escolhas são condicionadas por inaceitáveis preconceitos estéticos ou mesquinhas animosidades pessoais. Assim os Mendonças e os Reis são levados em ombros enquanto os talentosos ficam à margem, como autores sem préstimo nem valia.

É verdade que o tempo acaba por repor a escala de valores, conduzindo cada qual ao lugar que merece. Mas não é menos certo que isso costuma suceder tarde de mais. Eça e Pessoa - figuras incontestáveis do património cultural português, com leitores em todo o mundo - nunca recuperaram por completo destas humilhações que lhes foram infligidas pelos referidos grupúsculos de pequenos e médios literatos. O segundo nem sequer viveria um ano mais: o resto da sua obra acabaria por ser póstuma, aliás à semelhança do que ocorreu com Eça, exceptuando Os Maias, já concluído em 1887 e lançado logo no ano seguinte.

 

Serão casos isolados? Nem por isso. Pelo contrário, ambos ilustram um velho mal português: acontece asneira quando o critério de julgamento e o poder de decisão são confiados aos medíocres.

O que, para nossa desgraça, acontece quase sempre. Não só na literatura, mas em tudo o resto.

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