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Delito de Opinião

Os infantes fidalgos

Paulo Sousa, 30.04.21

No dia que assinei o meu primeiro contrato de trabalho, num gabinete da Direcção dos Recursos Humanos do Banco Nacional Ultramarino na Av. 5 de Outubro, tinha por companhia dois jovens igualmente iniciados.

Não os tinha conhecido nos chamados testes psicotécnicos, nem nas simulações de venda a que tinha sido sujeito, mas na primeira oportunidade sorrimos uns para os outros. Íamos todos para o mesmo e se os novos ciclos se iniciam em breves momentos, aquele era um desses breves momentos. Algo de novo e de positivo se iria iniciar. Lembro-me da roupa que levava, e do que fiz depois de ter saído daquele edifício em jeito de guitarra. Lembro-me também que quando alguém entrou na sala com os contratos, nos ter explicado que apesar de termos sido admitidos para a mesma função, eles tinham entrado em vagas para filhos de funcionários, e eu não. Tinham-me feito passar por aqueles quase jogos-sem-fronteiras, de discussões simuladas, de páginas e páginas de cruzinhas e ainda de uma bateria de perguntas feitas por uma psicóloga de decote arreganhado, tudo isso, enquanto aqueles sujeitos tinham avançado num curro especial. Estava sorridente e senti que a maior parte do meu sorriso era interior.

Importa dizer que naquele tempo um balcão de um banco como o BNU podia ter doze, treze ou mais funcionários, as máquinas de escrever eram omnipresentes e, no nosso caso, existiam três terminais informáticos. Estes equipamentos não tinham disco rígido e por isso precisavam de duas drives para floppy disc, uma para um disco de arranque e outra de trabalho. Um dos terminais nunca se podia desligar, pois estava sempre ligado ao mostruário da taxas de câmbio visíveis no exterior. O telex tinha sido retirado há pouco tempo e era o fax que encantava os proto-gigs da tecnologia.

A banca privada estava em franca expansão e todos os anos apresentava lucros obscenos, ao ponto do então embrionário BE (talvez ainda fosse apenas o PSR) espumar de cada vez que os resultados eram divulgados. Mais recentemente continuam a espumar mas sempre que se comentam os seus prejuízos. Lembrando as muito conhecidas experiências de Pavlov, acho que essa malta espuma sempre que ouve falar na banca em geral.

Poucos dias depois de assinar o referido contrato, comecei a trabalhar num balcão lisboeta da referida instituição. Na primeira pausa de almoço do primeiro dia de trabalho, tive a companhia de três colegas. Tínhamos todos mais ou menos a mesma idade e éramos os mais novos do balcão. A meio da refeição, e depois de entender que apontar defeitos ao nosso empregador era um tema querido a todos, contei que quando tinha assinado o contrato estavam lá mais dois maçaricos como eu, que tinham, imaginem só, entrado no banco em vagas para filhos de funcionários. Normalmente ao contar isto arrancava uma gargalhada na mesa, mas desta vez apenas deixei uma colega com as sobrancelhas muito levantadas e com um ar divertido, enquanto que os restantes dois comensais baixaram os olhos e transferiram o empenho da conversa para a limpeza do prato.

No regresso ao trabalho, depois de uma cotovelada acompanhada por uma gargalhada sussurrada, fiquei a saber que metade dos elementos que tinham almoçado naquela mesa tinham sido contratados no contingente dos infantes fidalgos.

O detalhe de existirem no banco vagas para filhos de funcionários andou comigo no bolso durante algum tempo. Sempre que havia oportunidade ou necessidade disso, libertava aquela história e a risada era garantida.

Estávamos no início dos anos 90. O crescimento económico parecia algo natural e isso levar-nos-ia a uma vida bem melhor do que aquela em que tínhamos crescido. Tropeçar em práticas assumidamente nepotistas daquele nível era comparável a encontrar uma pintura rupestre no vale do Côa e também um indicador de quão serôdias eram as práticas de gestão do Banco Nacional Ultramarino, banco que já lá está.

Lembrei-me de tudo isto ontem quando soube que o nosso governo irá abrir uma residência de estudantes exclusiva para filhos de funcionários públicos. A ministra da chamada modernização, antecipando as perguntas difíceis, avançou dizendo que se trata de uma medida que obedece a princípios da acção social e que se destina a alunos que tenham de estar deslocados da sua área de residência.

Eu olho para tudo isto e acho que estamos cada vez mais na mesma. Fico sem vontade, nem energia, para ir à procura de dados rigorosos que permitam a comparação dos rendimentos médios dos funcionários públicos e dos privados em funções comparáveis. Nem procuro saber quanto foi ou será investido neste espaço, nem em comparar esse valor com o das bolsas de acção escolar atribuídas em diferentes regiões do país. Nem quero lembrar o exemplo dado ao país pelos seus deputados no que respeita ao rigor da morada declarada. Nem que daquele tempo, foi-se o crescimento económico, mas o nepotismo ficou. E que as risadas causadas pela história dos infantes fidalgos de então, foram agora substituídas por um simples encolher de ombros. E tudo isto com o rótulo de Modernização.

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