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Delito de Opinião

Os deuses desceram à cidade

Sérgio de Almeida Correia, 18.01.15

O início da temporada é para qualquer melómano um momento mágico. Sabe-se que em qualquer latitude uma casa que se preze não começa a época com promessas, antes optando pelas certezas. Este ano também aconteceu assim.

Ele trouxe o piano de casa, da Suíça onde reside. Dizem-me que há muito que é deste modo que passeia a sua classe nas aparições que faz. Ainda bem. O resto estava cá. Uma grande orquestra, um público afectuoso e interessado, um naipe de músicos de gabarito, um maestro de classe mundial.

Depois, bom depois veio uma peça magnífica, uma explosão de harmonia, cor, movimento, pontuada aqui e ali por momentos de paixão. O teclado deslizando frenético para cá e para lá perante mãos que pareciam imóveis. Tudo envolvido pela afirmação de uma orquestra que é em cada dia que passa uma garantia de continuidade, de trabalho bem feito, de rigor e talento na execução, dirigida por um homem que atinge hoje o Olimpo nos movimentos largos da sua batuta. Começar a temporada com o piano de Zimerman, os músicos de Lu Jia e o Concerto para Piano n.1 em D menor, Op. 15, de Brahms, foi um gosto. Tudo bem feito. Seria bom que assim continuasse, mas eu sei que os deuses não descem à terra todos os dias.

Para a segunda parte, já sem Zimerman, ficámos entregues à Sinfonia n.º 3, em Fá Maior, Op. 60, do mesmo compositor. Um momento de excelência oferecido a todos para dar as boas-vindas ao novo ano.

O programa, na linha dos anteriores, graficamente bem concebido e de leitura fácil apesar de carregar nos tons mais invernais, merece uma atenção aos textos em português. Parágrafos começados com frases do tipo "Como um compositor do século XIX que guardava grande nostalgia pelo era do classicismo,(...)" (página 18) e segue por ali fora, não podem acontecer.

A comunhão com o público continua a ser excelente. A cidade tem hoje um público mais conhecedor, mais aplicado e mais exigente, mas infelizmente nem todos estão a fazer por merecer o que lhes está a ser dado. Apesar da tolerância de 15 minutos antes do início dos espectáculos, há quem insista em chegar tarde, obrigando à abertura de portas durante as breves paragens entre movimentos de uma mesma peça e ao corrupio desagradável e incómodo que obriga orquestra e executantes a aguardarem que finalmente se instalem, acomodem e deixem de tossir. Pior quando a meio da segunda peça começam as mães e as crianças, jovens e menos jovens, a abandonar a sala, numa tremenda falta de respeito por quem actua e por quem escuta. E tudo porquê? Para não perderem o barco ou comboio? Não, nada disso, para fazerem fila do lado de fora do auditório para obterem autógrafos das vedetas. E isto para já não falar na insistência no uso sorrateiro dessa praga de smartphones e telemóveis que invadiu todos os espaços e que leva as pessoas a fazerem as figuras mais ridículas, seja por causa da inevitável selfie, seja para obterem a melhor foto possível durante as actuações, levantando braços e acertando posições para distracção e desespero de quem quer estar concentrado na audição, apostado em receber a cor que chega do palco e se reflecte nas confortáveis sonoridades da madeira. O excelente trabalho que as gentes do Instituto Cultural de Macau têm feito na promoção e divulgação cultural, trazendo gente de nível estratosférico a estas paragens, proporcionando espectáculos que arrastam até Macau o exigente e conhecedor público de Hong Kong, não pode continuar a ser torpedeado pela incultura, desprezo e arrogância cívica de alguns. Levar a cultura a todos, tornando-a acessível às massas e formando públicos exigentes não se faz só com parlapiê e boa vontade, fechando os olhos aos endinheirados ordinários. Impõem-se, por isso, medidas mais rigorosas, que evitem aos seguranças as discretas mas constantes subidas e descidas para chamar a atenção de quem prevarica sabendo que está a prevaricar. Por amor à arte. Neste caso mais pela cidadania, que é por onde passa a verdadeira revolução cultural que faz a diferença entre os homens e as nações.