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Salvo qualquer surpresa de última hora, será hoje votada na Assembleia da República a “Moção de Confiança”, apresentada pelo XXIV Governo Constitucional, liderado por Luís Montenegro, depois de aprovada na reunião do conselho de ministros de 6 de Março p.p..
Os pressupostos dessa moção são muito discutíveis, havendo uma falsa premissa e um objectivo que se reconduzem ao mesmo e que não se verificaram antes, nem jamais ocorrerão no futuro com o actual primeiro-ministro e o seu governo: é falso que tivesse sido conquistada a estabilidade política, que esta tivesse sido colocada em causa, e que, no futuro, se a moção não for chumbada, o Governo passe a ter “estabilidade política efe[c]tiva (...) para que possa prosseguir a execução do seu programa de transformação do País”. Ademais, é absolutamente falso que seja apresentada com “pleno sentido de responsabilidade e exclusivo foco no interesse nacional”.
Nem o Governo teve estabilidade política desde que tomou posse – quer pelo magro resultado obtido pelo PSD nas eleições do ano passado, quer pelas próprias circunstâncias em que este Governo foi investido e conseguiu fazer passar o seu programa na Assembleia da República, quer ainda pela sua instabilidade interna, só não tendo caído já porque o PS deixou passar o orçamento e se absteve na votação de duas moções de censura –, nem será pelo facto desta moção, eventualmente, poder passar com a abstenção do PS, se entretanto o primeiro-ministro não tiver o bom senso de retirá-la, que este Governo terá estabilidade política no futuro.
Enquanto Luís Montenegro não der de uma vez e sem rodeios as explicações que há muito devia ter dado, de forma séria e credível, coisa que até hoje não aconteceu, este Governo estará sempre à beira do precipício. Por culpa própria, erros evitáveis e a mais absoluta inépcia política.
A apresentação da moção de confiança corresponde apenas a uma vontade conjuntural inequívoca do líder do PSD de fazer cair o Governo. Convencido como está, mais a sua equipa de spin doctors, que há dias se desdobrou em cinco canais televisivos para se ir contradizendo em directo, de que em futuras eleições poderá reeditar a maioria absoluta alcançada pelo PSD de Cavaco Silva nas distantes eleições de 19 de Julho de 1987.
Não estou convencido que o consiga. As condições actuais são bastante diferentes das vividas naquele tempo. Ainda porque há uma grande diferença de formação, carácter e personalidade entre os líderes e as suas equipas. Basta pensar que este PSD é dirigido por uma espécie de Three Stooges, correspondendo Montenegro, Hugo Soares e Leitão Amaro, na perfeição, aos famosos Moe, Larry, e Curley, tal é a falta de jeito e de preparação que exibem para gerir a coisa pública e de que têm dado abundante mostra.
Nenhum dos objectivos teorizados sobre o significado político de uma moção de confiança – a Constituição fala em voto de confiança no art.º 193.º, mas como salientam Canotilho e Vital Moreira “a sua disciplina reconduz-se, nos termos constitucionais e regimentais, à categoria de moção”, constante dos art.ºs 163.º, alínea e) e 195.º, n.º 1, alínea c) – será cumprido com esta iniciativa: (i) não existe uma maioria parlamentar de suporte do Governo que possa renovar o apoio à sua actuação, (ii) não subsiste nenhuma maioria parlamentar de apoio e, se o PS se abstiver, (iii) não será possível “provocar o reconhecimento formal da falta de condições de governo”, para com isso desencadear um novo rearranjo governamental nos quadros existentes da AR.
Este último inviabilizado pela antecipação do PR em anunciar ao país, antes mesmo da apresentação da moção, de qualquer votação e de reunir o Conselho de Estado, a dissolução do parlamento e a convocação de futuras eleições. Marcelo Rebelo de Sousa nunca escondeu a sua aversão a Montenegro e, quer-se queira quer não, foram os tais comportamentos e uma “mentalidade rural” que nos colocaram neste impasse.
Sobre o que nos trouxe até aqui não têm faltado opinadores. E como sobre o essencial já me pronunciei, não vou perder mais tempo com esse rosário. Preocupar-me-ei sim em aqui equacionar os cenários possíveis e o que nos pode esperar.
Admitindo, por um bambúrrio que me escapa, que o PS abster-se-á, a moção de confiança passará e o Governo sobreviverá, nem por isso deixaremos de ter um primeiro-ministro a prazo e com uma espada de Dâmocles sobre a cabeça. O PS avisou que com ou sem eleições haverá sempre Comissão Parlamentar de Inquérito. As eleições autárquicas não constituem futuro seguro de vida, as presidenciais também não – mais a mais com o ultra desacreditado Marques Mendes – e o chumbo de um futuro orçamento é mais do que garantido. Se a moção passar e o Governo não cair hoje, cairá mais tarde, e entraremos em 2026 com a mesma instabilidade, com um governo de duodécimos e um novo PR sem saber muito bem como gerir uma crise que permanecerá.
Se o Governo vir hoje “chumbado” o voto de confiança, a incerteza também continuará.
Para lá do que as sondagens que começaram a surgir possam indicar, parece-me claro que só por milagre é que eleições em 11 ou 18 de Maio nos trarão qualquer clarificação.
O PSD sairá sempre penalizado. Em que medida ninguém sabe. O PS, com este líder, e com os tiros que começou a disparar para o ar a propósito das presidenciais, não oferece segurança e confiança ao eleitorado. Uma vitória em próximas eleições terá sempre uma dimensão equivalente à vitória do PSD de Montenegro em 2024.
O impasse estará garantido. Com um BE em queda vertiginosa, depois de se conhecer a sua faceta patronal e senhorial, enredado em despedimentos, amamentadoras e rentabilizações imobiliárias do seu património; com um PCP que sobrevive nas catacumbas do Muro de Berlim e que, imagine-se, afinal também paga sem declarar e despede como qualquer outro patrão manhoso, não há alternativas credíveis, capazes e com perspectivas de crescimento e mobilização à esquerda.
À direita o quadro é ainda mais tenebroso. O CDS é um defunto que está há anos em câmara ardente. O prestígio e capacidade de liderança política do seu líder e actual ministro da Defesa estão bem espelhados na imagem que nos dias que correm nos chega da Marinha: depois de uma gloriosa missão no Árctico (!), afundou-se um navio-escola que estava atracado numa doca, sem sequer sair para o mar, e os dois únicos submarinos estão inoperacionais. Nem na guerra do Solnado se conseguiria melhor às portas de uma campanha eleitoral.
Quanto ao Chega tenta fazer pela vida. Ventura corre desaustinado atrás dos votos despachados nas malas do deputado Arruda, nas confissões e evidências de abusos sexuais sobre menores de alguns da sua pandilha, mais os insultos parlamentares a uma deputada invisual e os apartes boçais dos muitos labregos da sua bancada, revelando a falta de preparação para o trabalho parlamentar no primeiro relatório que lhes coube elaborar e a ausência de quadros sérios e capazes, num sem-número de situações a que o bombeiro André não se cansa de acudir e que fica ainda mais perturbado pelo cenário de eleições legislativas antecipadas em ano de autárquicas e depois de apregoada a sua candidatura presidencial.
O partido de Rui Rocha, Iniciativa Liberal, embora abalado pelo caso das falsificações de um antigo dirigente, ainda parece ser o único onde se consegue pensar e equacionar cenários, mantendo alguma compostura, como ao revelar que votará favoravelmente a moção de confiança, sempre insuficiente quando tarda em ver crescer a sua base de apoio – culpa dos dirigentes – e a sua mensagem continua a mostrar muitas dificuldades de assimilação por um eleitorado que desconfia da errância que vai de um discurso mais sério do líder às mensagens trauliteiras de alguns deputados e aos saltinhos histéricos de apoio ao palhaço argentino Milei.
Correndo o risco de errar, tanto mais que de vidente ou cartomante não tenho nada, apostaria que assistiremos a mais uma subida da abstenção nas legislativas que se avizinham, que retirará ainda mais legitimidade ao regime e aos partidos que o sustentam, e que só poderá vir a ser contrariada nas presidenciais.
Qualquer que seja o resultado da votação da moção de confiança, teremos de continuar com estes figurões durante mais uns tempos, não havendo a mínima esperança, à falta de alternativa, de nos livrarmos destes ou dos que anseiam desesperadamente substituí-los na gestão do pote.
Sem uma revolução nos partidos, sem que estes se libertem dos seus emplastros, destes “avençados” do regime, e sem verdadeiras reformas do sistema eleitoral e do sistema de partidos, não haverá democracia que resista.
Belém poderia fazer toda a diferença. Infelizmente, o friso de tocadores de berimbau, cartomantes e tudólogos que se posiciona só vai garantir mais chinfrim.
Depois desta última experiência marcelista, tornou-se clarinho que é muito mais fácil colocar em Belém um D. Sebastião do que encontrar no universo dos partidos um primeiro-ministro decente. Bastava haver um, um que fosse, com o bom senso, a seriedade, o equilíbrio, o distanciamento, a ética, e a preparação política e intelectual de um Guilherme de Oliveira Martins ou de um Correia de Campos, para só referir dois nomes, para nos safarmos.
Mas não. O que se afigura é um corso carnavalesco liderado por um almirante que traz consigo um manual e roteiro político à Borda d’Água, onde encontra, pelo que se leu no Expresso, receita e resposta para tudo: das sementeiras às marés, dos provérbios populares à astrologia e às fases da lua.
Não sei é se será tão bom no registo das efemérides. Mas é bom que se prepare. O velho Américo de Deus, também ele almirante, não falhava uma. Ficou lá uma vida. E só não ficou mais tempo porque o despacharam para o Brasil.