Os 25 de Abril
No Congresso do CDS ficou a saber-se que o Governo iria criar uma comissão para comemorar os 50 anos do 25 de Novembro.
As comemorações são, já se sabe, uma chatice, excepto se os respectivos feriados calharem junto ao fim-de-semana.
Fazem todavia falta, a gente felicita-se pelo que as datas celebram, mesmo que vá à praia, e não levaria a bem que o viver em comunidade não tivesse as suas liturgias.
A esquerda no seu conjunto torce o nariz à decisão. Isso é compreensível da parte do PCP porque foi o principal derrotado naquela data e pôs em banho-maria a partir daí o seu sonho de uma sociedade comunista; e do Bloco, que veio a recolher o rebotalho ultraesquerdista daquela época, que queria um comunismo mais comunista do que o da URSS, e que hoje recicla em causas sortidas tendentes a melhorar o capitalismo até que este deixe de o ser.
Já não é da parte do PS, que foi na ordem civil o principal vencedor do confronto. E que Mário Soares tenha liderado o combate por ter o fantasma de Kerensky a assombrá-lo, e jogar portanto a sua sobrevivência, não lhe tira o lugar histórico que justamente por isto merece.
Que a maior parte dos viventes não existisse, ou não se lembre, naqueles tempos atros, explica talvez que possa engolir as falsificações em curso, que omitem as prisões sem culpa formada, o cerco da AR, as ocupações selvagens, os saneamentos e todo o restante breviário das revoluções comunistas, que viria aliás mais tarde a ter um filho póstumo sob a forma da organização terrorista PRP-25 de Abril, sob a jovial liderança do criminoso Otelo.
Mas o PS é uma instituição, tem de ter memória. Fingir não a ter é preservar a amizade das demências à sua esquerda – já foi e pode voltar a ser útil, mas é uma desonestidade cínica.
Vivi as duas datas, recordo quase tudo, e sofro de irreprimível tendência para interpretar os factos, as pessoas e as coisas, à minha maneira. No caso, é esta:
Não há um 25 de Abril, mas quatro: o inicial (o dia inteiro e limpo, na formulação de Sofia, uma poetisa sobrevalorizadíssima, como o futuro dirá), que foi na realidade uma quartelada – os oficiais milicianos poderiam ombrear com os de carreira, numa complicada história de tempo de serviço que anda por aí contada em livros que podem ser escarafunchados por quem for curioso, e isso não podia ser. O pano de fundo era uma arrastada guerra, cujo fim não se via e que, não sendo particularmente mortífera, cobrava o seu preço sob a forma de uma punção gigantesca no Orçamento de Estado (à volta de um terço, em média nos 13 anos que durou) e subtração de alguns anos à vida de homens no início da idade adulta.
Este pano de fundo era sentido pela população no seu conjunto, e portanto também pelos militares. E é um artigo de fé sem nenhuma sustentação (salvo o palpite) que houvesse um generalizado apoio à guerra colonial.
Havia militares com consciência política, e inclusive alguns comunistas, mas a maioria, como a dos civis, tinha umas generalizadas ignorância e resignação em tal matéria.
A quartelada ganhou com facilidade porque o regime, exaurido, não teve quem o defendesse. Um golpe militar, porém, precisa de uma legitimação ideológica que o justifique. E aparece aqui o segundo 25 de Abril, primeiro sob a forma de convite aos generais tidos como desafectos do regime e depois com o nascimento de clivagens políticas no seu seio, a começar logo na Junta de Salvação Nacional, que incorporava água e azeite como Spínola e Rosa Coutinho. Em 28 de Setembro Spínola e outros caíram e a Junta esquerdizou-se, deriva que culminou com o golpe mal explicado ainda, ao menos para mim, de 11 de Março de 1975 e a criação do Conselho da Revolução, três dias depois.
E vão dois. O terceiro é o PREC. Este assentou na inicial explosão de alegria popular logo no próprio dia 25 de Abril, sabiamente explorada pelo savoir-faire do aparelho comunista e, sobretudo a partir do referido 11 de Março, consistiu na liderança ideológica do PCP (com alguns resquícios de folclore revolucionário protagonizados por uma nuvem de grupúsculos hiper-esquerdistas, como a UDP, ou União de Delatores e Pides, como dizia o MRPP, outra seita, esta da variedade maoísta, o MDP, a LCI, o MES e outras 789 formações).
Do que se tratava era da cubanização de Portugal, sob a direcção bicéfala de Álvaro Cunhal como ideólogo e grande líder das massas (para utilizar o jargão querido a leninistas) e Vasco Gonçalves, o coronel de serviço à revolução.
O 25 de Novembro veio garantir que Portugal seria uma democracia liberal, com o seu corolário de liberdade de opinião, eleições legítimas, etc., e abrindo a porta à adesão à CEE. Ou seja, é o quarto 25 de Abril, que regressa ao segundo e o consagra definitivamente. É confuso? Um pouco. Acontece muito com períodos conturbados.
Vejamos portanto as coisas com clareza: O segundo 25 de Abril pode ser celebrado (por quem não seja saudosista do Estado Novo) por causa da lembrança do vento de alívio e esperança que varreu o país no próprio dia e nos seguintes, antes de a esquerda revolucionária empestar os ares; quem desfila na Avenida da Liberdade são os saudosistas do PREC e os socialistas, mas estes apenas por causa da amálgama interesseira que fazem do que se passou, envolvendo o mau e o bom na mesma aura romântica de tempos imaginariamente felizes; quem desfila naquela Avenida, se for de direita, está equivocado no que celebra e nas companhias. E não me venham falar de tolerância e convivência, estas servem para regular o convívio entre pessoas, não para abastardar memórias e falsificar passados; e, finalmente,
O 25 de Abril bom nunca poderia ser celebrado se o 25 de Novembro não o tivesse salvo. Donde, mon coeur balance: qual é a data mais importante? A mim me parece a primeira, pela mesma razão que D. João II talvez tenha sido o mais importante dos nossos reis, mas não poderia ter existido sem D. Afonso Henriques. O melhor, na dúvida, é celebrar as duas datas em pé de igualdade.
Este assunto, que não contende com a qualidade ou falta dela da nossa vida, tem um valor simbólico, e haverá decerto muita gente a desvalorizá-lo por isso. Mas trata-se do fio da História que faz com que sejamos Portugueses de um certo assim, e não assado. Isso conta, mesmo que usemos a próxima quinta-feira apenas para ir passear a pé se o tempo estiver de feição, ou de carro se não estiver. Que eu, na verdade, vou mas é almoçar à Gafanha da Encarnação.