Ontem em Díli, hoje em Kiev: ainda há heróis
As melhores histórias, por vezes, passam quase ao lado das peças que preenchem o quotidiano televisivo. Sucedeu isso na última semana, em dois pontos muito diferentes do mapa. Primeiro em Díli, depois em Kiev. Tivemos a noção de que havia ali potenciais reportagens a pedir relato detalhado, mas acabaram por ser apenas notas de rodapé porque a agenda política prevalecia como prioridade absoluta.
O primeiro caso ocorreu durante a visita oficial do Presidente da República a Timor-Leste, associada às comemorações do vigésimo aniversário da independência daquela nação lusófona da Insulíndia. Independência conquistada graças a uma resistência tenaz – daquelas que a História regista com assombro. David venceu o Golias indonésio após 25 anos de opressão. Enfrentando torturas, violações, massacres.
A independência foi um parto com dor. A que assistiu o padre João Felgueiras, ali residente desde 1971. Nunca abandonou a população local – nem quando a administração portuguesa partiu, nem quando o último militar regressou a Lisboa, nem quando os esbirros de Jacarta ali semeavam o terror. Permaneceu. Continuou a divulgar a nossa língua, tornada clandestina. Ajudou vários timorenses a fugir, em busca da liberdade – incluindo a actual embaixadora em Portugal.
Hoje com cem anos, este missionário jesuíta sente orgulho ao ver enfim inaugurada a escola que sonhou. Surgiu de relance nas televisões que cobriram a viagem presidencial. Soube a pouco: daria reportagem autónoma.
O mesmo pode dizer-se do funcionário ucraniano da embaixada portuguesa em Kiev condecorado por António Costa na sua visita-relâmpago à capital ucraniana. Graças a ele, que ali trabalha há 25 anos, a nossa legação diplomática nunca encerrou. Durante largas semanas, em que se previa o pior, Andryi Putilovsky actuou como nosso embaixador de facto. «O pessoal desta embaixada é a minha segunda família e Portugal tornou-se a minha segunda pátria», declarou, visivelmente comovido, ao ser abraçado pelo primeiro-ministro.
Heróis quase anónimos que as televisões nos apresentam por instantes, à boleia da agenda oficial dos políticos. Mereciam mais. Para conhecermos em pormenor as odisseias que travaram, na sombra e no silêncio. Como têm feito, nos últimos três meses, alguns enviados especiais à Ucrânia. Desmentindo aquela canção de Chico Buarque: «A dor da gente não sai no jornal.»
Entre eles, justifica-se destacar Iryna Shev, da SIC. A tragédia ali desenrolada tem sido uma oportunidade para esta luso-ucraniana se revelar exímia narradora de histórias que vai descobrindo num terreno fértil em minas e armadilhas. O facto de dominar o idioma, sendo bilingue perfeita, ajuda muito. Evita fazer a triste figura daquele “grande repórter” de outra estação que andava perdido nas ruas de Kiev soltando frases em inglês aos transeuntes, incapazes de entendê-lo.
Histórias de gente comum, vítima dos horrores da guerra. Sem conhecimentos militares nem sapiência geopolítica. Ontem em Timor, hoje na Ucrânia. Amanhã pode ser qualquer de nós.
Texto publicado no semanário Novo.