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Delito de Opinião

Onde acabam as utopias ou «O mais humano dos homens»

José António Abreu, 07.11.15

Ao ler Zazúbrin, pensamos finalmente num terceiro autor, mestre no domínio do sarcasmo político e do ódio de classe: Vladímir Lenine. E principalmente no seu estilo telegráfico, que nem John dos Passos ou Hemingway seriam capazes de sonhar. Para compreender todo o realismo de Zazúbrin, é preciso ler alguns telegramas desse «homem, o mais humano dos homens», como o qualifica a propaganda do partido.

 

«Ao camarada Zinóviev, em Petrogrado:

Camarada Zinóviev! Acabamos de saber hoje, no Comité Central, que em Petrogrado os operários querem responder ao assassínio de Volodarski com um terror de massas e que você os impediu. Protesto energicamente! Fazer isso é comprometer-nos: mesmo nas resoluções do Soviete agitamos a ameaça do terror de massas, mas assim que se trata de passar à acção, travamos a iniciativa revolucionária, perfeitamente justa, das massas. Isso é impossível! É preciso encorajar a energia e o carácter de massas do terror.»

26 de Novembro de 1918

 

«Ao comité executivo de Penza:

É indispensável aplicar um terror de massas sem piedade contra os kulaks, os popes e os guardas brancos. Fechar os suspeitos num campo de concentração fora da cidade. Telegrafar execução.»

9 de Agosto de 1918

 

«Ao camarada Fiódorov, presidente do comité executivo de Nijni-Nóvgorod:

Em Nijni prepara-se manifestamente uma insurreição dos guardas brancos. É preciso mobilizar todas as forças, aplicar imediatamente o terror de massas, fuzilar e deportar as centenas de prostitutas que embebedam os soldados, os antigos oficiais, etc. Sem perder um minuto.»

9 de Agosto de 1918

 

«Ao camarada Chliápnikov em Astracã:

Aplique todas as suas forças em apanhar e fuzilar os prevaricadores e os especuladores de Astracã. É preciso ajustar contas com essa escumalha de modo que nunca mais se esqueçam.»

12 de Dezembro de 1918

 

«Telegrama ao camarada Pajkes em Saratov:

Fuzilem sem perguntar nada a ninguém e sem delongas imbecis.»

22 de Agosto de 1918

 

Hoje os reformadores oficiais do sistema soviético atribuem todos os pecados a José Estaline, filho de sapateiro, embranquecendo o governo de Vladímir Lenin, filho de professor, «justo e justificado», porque se começamos a criticar também esse período da história soviética, o partido perderá tudo o que lhe resta, e em primeiro lugar a justificação do seu poder actual. Lenine criou a Tcheka num dos seus primeiros decretos. Os bolcheviques, que tinham tomado o poder através de um golpe de Estado militar (eles próprios não qualificavam Outubro de 1917 como revolução; esse mito nasceu mais tarde), não poderiam continuar a ocupá-lo sem essa máquina de extermínio e de terror. De facto, a história do poder soviético é precisamente a história da Tcheka, desde os primeiros anos do terror «de classe», entre os mais cruéis que existiram, até à transformação da Tcheka-NKVD no KGB moderno, cuja esfera de acção abrange todas as coisas, passando pelo período estalinista que custou a vida a milhões de vítimas (os historiadores chegam hoje a um número superior a trinta milhões de mortos).

 

Do prefácio de Dmitri Savitski ao livro O Tchekista, de Vladímir Zazúbrin, editado em 2012 pela Antígona com tradução de António Pescada. Tanto o prefácio como o livro tiveram publicação original em 1989, apesar do segundo - ler crítica aqui - estar escrito desde 1923. Os telegramas foram recolhidos pelo russo Venedikt Eroféiev. Como seria de esperar, Zazúbrin acabou fuzilado (em 1938).

 

Dedicado a quem, ainda hoje (ver comentários), tenta usar Estaline para desculpar Lenine.

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