Onde acabam as utopias ou «O mais humano dos homens»
Ao ler Zazúbrin, pensamos finalmente num terceiro autor, mestre no domínio do sarcasmo político e do ódio de classe: Vladímir Lenine. E principalmente no seu estilo telegráfico, que nem John dos Passos ou Hemingway seriam capazes de sonhar. Para compreender todo o realismo de Zazúbrin, é preciso ler alguns telegramas desse «homem, o mais humano dos homens», como o qualifica a propaganda do partido.
«Ao camarada Zinóviev, em Petrogrado:
Camarada Zinóviev! Acabamos de saber hoje, no Comité Central, que em Petrogrado os operários querem responder ao assassínio de Volodarski com um terror de massas e que você os impediu. Protesto energicamente! Fazer isso é comprometer-nos: mesmo nas resoluções do Soviete agitamos a ameaça do terror de massas, mas assim que se trata de passar à acção, travamos a iniciativa revolucionária, perfeitamente justa, das massas. Isso é impossível! É preciso encorajar a energia e o carácter de massas do terror.»
26 de Novembro de 1918
«Ao comité executivo de Penza:
É indispensável aplicar um terror de massas sem piedade contra os kulaks, os popes e os guardas brancos. Fechar os suspeitos num campo de concentração fora da cidade. Telegrafar execução.»
9 de Agosto de 1918
«Ao camarada Fiódorov, presidente do comité executivo de Nijni-Nóvgorod:
Em Nijni prepara-se manifestamente uma insurreição dos guardas brancos. É preciso mobilizar todas as forças, aplicar imediatamente o terror de massas, fuzilar e deportar as centenas de prostitutas que embebedam os soldados, os antigos oficiais, etc. Sem perder um minuto.»
9 de Agosto de 1918
«Ao camarada Chliápnikov em Astracã:
Aplique todas as suas forças em apanhar e fuzilar os prevaricadores e os especuladores de Astracã. É preciso ajustar contas com essa escumalha de modo que nunca mais se esqueçam.»
12 de Dezembro de 1918
«Telegrama ao camarada Pajkes em Saratov:
Fuzilem sem perguntar nada a ninguém e sem delongas imbecis.»
22 de Agosto de 1918
Hoje os reformadores oficiais do sistema soviético atribuem todos os pecados a José Estaline, filho de sapateiro, embranquecendo o governo de Vladímir Lenin, filho de professor, «justo e justificado», porque se começamos a criticar também esse período da história soviética, o partido perderá tudo o que lhe resta, e em primeiro lugar a justificação do seu poder actual. Lenine criou a Tcheka num dos seus primeiros decretos. Os bolcheviques, que tinham tomado o poder através de um golpe de Estado militar (eles próprios não qualificavam Outubro de 1917 como revolução; esse mito nasceu mais tarde), não poderiam continuar a ocupá-lo sem essa máquina de extermínio e de terror. De facto, a história do poder soviético é precisamente a história da Tcheka, desde os primeiros anos do terror «de classe», entre os mais cruéis que existiram, até à transformação da Tcheka-NKVD no KGB moderno, cuja esfera de acção abrange todas as coisas, passando pelo período estalinista que custou a vida a milhões de vítimas (os historiadores chegam hoje a um número superior a trinta milhões de mortos).
Do prefácio de Dmitri Savitski ao livro O Tchekista, de Vladímir Zazúbrin, editado em 2012 pela Antígona com tradução de António Pescada. Tanto o prefácio como o livro tiveram publicação original em 1989, apesar do segundo - ler crítica aqui - estar escrito desde 1923. Os telegramas foram recolhidos pelo russo Venedikt Eroféiev. Como seria de esperar, Zazúbrin acabou fuzilado (em 1938).
Dedicado a quem, ainda hoje (ver comentários), tenta usar Estaline para desculpar Lenine.