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Delito de Opinião

On the road again

Maria Dulce Fernandes, 10.06.20

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Depois da Grande Aventura Europeia, o meu pai começou a enfastiar de conduzir. Trocou a Variant por um Carocha cor de areia e sedentarizou os nossos dias de férias, que é como quem diz, passámos a acampar “cá dentro”, mais especificamente em Lagos, no Parque de Turismo, com tenda montada de Março a Setembro, não sem antes termos vivido duas aventuras meio loucas, uma em Andorra e a outra em Algeciras e Marrocos. É destas que falarei primeiro, começando de sul para norte.

Com o Carocha escachado sob o peso da tenda e apetrechos indispensáveis a qualquer bom campista que se preze, mas com a panache tão típica do meu pai, deixámos Lisboa rumo a Algeciras num Agosto magnífico de 1977. Desta feita íamos apenas os cinco, o pai, a mãe, eu, o mano e o menino já com sete anos, um pirralho levado da breca.

Primeira paragem em Sevilla, descarregar o carro, jantar e dormir, que viagens longas de automóvel sem ser por autoestrada são uma estafa. No dia seguinte o pai e a mãe tiraram a manhã para ir às compras com o menino e eu e o mano fomos almoçar fora. Os dois. Sozinhos! Coisa insólita e meio atrapalhada, mas tirámos o melhor partido que pudemos.

E lá seguimos para Algeciras onde chegámos a meio da tarde. Camping Costasol. Cheio, quase indisponível, barulhento e bastante poeirento, mas era o que havia.

Montar a tenda, encher colchões, arrumar a data de tralha, não perder o menino de vista… tudo tarefas hercúleas, principalmente a última, que garantidamente o semideus riscou dos seus 13 trabalhos.

O jantar e a noite passaram-se em sobressalto com o barulho dos camiões a acelerarem ali do outro lado da sebe, mas rapidamente chegou a alvorada e o dia amanheceu lindo. Partimos rumo à cidade prontíssimos para embarcar no ferry para Ceuta, para o primeiro de quatro dias em Marrocos: Ceuta, Tetouan, Chouen e Tanger.

A minha primeira impressão de Marrocos foi o cheiro. Era uma mescla de pó com suor, especiarias, curtumes e sebo. Ceuta - muita gente, muita confusão. Como em tudo o que é excursão organizada, tínhamos à nossa espera um guia e um autocarro. Tour pelos pontos turísticos mais importantes, as muralhas da cidade velha, casa dos dragões, Plaza de los Reyes, o tradicional souk, os camelos e as cobras para a fotografia, tudo isto sempre com um olho no camelo e o outro no menino.

Almoço e partida para Tétouan, a Joia do Rif. Ampla, bonita, moscada e de labiríntica medina, Tétouan traz-me as primeiras agradáveis recordações de uma civilização diferente e afável do nosso primeiro contacto com a África setentrional. O hotel era simpático, apesar de as camas terem ar de dormidas, mas parece que há 40 e tal anos as infraestruturas para desenvolvimento das povoações interiores e do turismo ainda deixavam e deixariam muito a desejar.

No dia seguinte o azul e branco de Chouen, entalado entre montanhas do Rif, com vistas estupendas, em que o nevoeiro brincava às primeiras horas de luz por entre cristas e picos até se diluir no azul do céu. O bairro Andalui, a medina, um souk com moscas a mais e contínua abordagem para oferta de substâncias ilícitas, gente risonha. Muita carne caprina às refeições e felizmente muita e variada fruta. Compras, eram um desnorte. Mostrar interesse, por mínimo que fosse, em qualquer artigo produzia uma marcação cerrada e feroz e uma perseguição contínua por parte dos vendedores até à capitulação total.

Mais uma alvorada e nova partida, desta feita para Tanger. Passeio e almoço em restaurante típico com muita música, dança do ventre e o melhor chá de hortelã que já bebi.

Regressámos a Algeciras e ao camping e nos dias seguintes deambulámos por Marbella, Fuengirola, Torremolinos… as praias mais in do sul de Espanha, com águas cálidas e a areia escura. Meu belo Algarve de praias douradas…

Foi então que a minha mãe teve a feliz ideia de voltar a Ceuta para umas comprinhas que não teria podido fazer, porque o menino era ocupação e preocupação para todos os minutos de todos os dias passados pelas terras de Alah.

Combinou-se que ficaríamos os três filhos confinados ao Camping, prometidos e comprometidos a vigiar o menino com olhos de águia. Assim foi. Tudo para a piscina! Confinada a um espaço só com um acesso, bastante grande e com água corrente contínua que jorrava da boca de um leão colocado a um dos topos, espreguiçadeiras e sol, convidava ao lazer e à preguiça.

Tão bom a sonolência, tão calmo tão… sísmico? Tudo a correr e a fugir e a barafustar, sentei-me na cadeira com o coração aos pulos, “Niño Loco, niño loco" mas o quê? Quem? Eis senão quando consigo entender a causa de tanta confusão: o niño loco não era outro senão o menino que, qual enguia, se esgueirara de mansinho, escalando a cabeça golfante do leão que alimentava a piscina e travava risonho e feliz a saída da água com ambas as mãos e braços, de tal modo que encharcava violenta e caudalosamente tudo e todos em seu redor. O problema foi conseguir tirá-lo de lá. Ninguém saiu ileso, ou enxuto, vá lá.

Um buraco! O meu reino por um buraco! Eram descomposturas em catadupa nos mais variados dialectos. Eram pedidos de desculpa mal amanhados e envergonhados enquanto se lutava com braço do malandrim, que insistia em voltar à acção.

A partir desse dia, assim que o niño loco entrava na piscina, todos os utentes iam mudando a espreguiçadeira de lugar, porque bastava um segundo a olhar noutra direcção para o patife voltar à carga.

No fim olhava para as caras zangadas com aqueles olhos brilhantes cor de água emoldurados pelas melenas douradas e desarmava tudo e todos, que ainda acabavam por lhe comprar gelados. Que safado.

O niño loco voltou para casa em Lisboa, mas passados dois anos uns amigos que acamparam no Camping Costasol calhou mencionarem o niño loco. Não havia funcionário que se não lembrasse. E tiveram direito a um gelado cada, como mandava a tradição.

Bom Dia de Portugal para todos.

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