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Delito de Opinião

Olhos no céu, direitos fundamentais no chão

Sérgio de Almeida Correia, 10.05.20
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(foto Carmo Correia/LUSA)

Graças a mais uma decisão, que teve tanto de ilegal quanto de arbitrária e caricata, prossegue o acelerado processo de erosão das liberdades fundamentais e da autonomia da Região Administrativa Especial de Macau, visando a sua integração plena na República Popular da China.

Depois de há um mês ter dado autorização para a utilização de espaços públicos para apresentação de uma exposição fotográfica itinerante sobre o 4 de Junho de 1989, e o que aconteceu na Praça de Tiananmen, o Instituto dos Assuntos Municipais (IAM) resolveu, na passada sexta-feira, 8 de Maio, já com a exposição a decorrer, “revogar” a sua própria decisão.

De acordo com a notícia da TDM/Rádio Macau, desta vez, o fundamento para intervir foi o de considerar que uma exposição fotográfica dedicada aos acontecimentos de 4 Junho de 1989 não estava de acordo com as atribuições do organismo.

Segundo José Tavares, o Conselho de Administração do IAM “decidiu uniformizar os pedidos. Isto é, os pedidos de utilização dos nossos espaços têm de condizer com as nossas atribuições e competências. Foi uma decisão que tomámos no Conselho de Administração”. Para o presidente do CA do IAM, quando as actividades “não condizem com as nossas atribuições ou competências não cedemos, é simples”. Para José Tavares, o Conselho de Administração entendeu simplesmente rever a decisão. Tavares não mediu o alcance das suas palavras, nem da decisão tomada. Foi meia bola e força.

As justificações dadas para a mudança de decisão, e em especial o momento em que esta acontece, depois de em Abril ser dada autorização para a ocupação de espaços públicos com a exposição, sem qualquer fundamento aceitável à luz de um Estado de direito, e sem que se escore na prática anterior de uma qualquer ilegalidade que viciasse a decisão de autorização, indiciam claramente uma forte motivação política.

Atenta a falta de autonomia do organismo IAM, e a forma como as coisas se passaram, é difícil acreditar que não tenha havido intervenção de terceiros.

Desde logo, porque se o objectivo fosse o da uniformização de procedimentos, ou seja, razões de natureza meramente burocrática, nada impediria que a decisão de uniformização só se aplicasse para futuros pedidos, já isso é que faria sentido, e não que assumisse carácter retroactivo e com a exposição já em curso.

Depois, porque quando o Presidente do IAM refere que essa exposição não se insere nas atribuições do organismo a que preside, invoca exactamente o argumento que não poderia invocar para a decisão.

Porque se o IAM é um órgão “incumbido pelo governo” de servir a população no domínio da cultura, recreio e salubridade pública, tendo entre as suas atribuições “incentivar a harmonia e a convivência das diversas comunidades da sociedade e promover a educação cívica”, parece evidente, aos olhos de qualquer cidadão dotado de razão, que dar a conhecer à população de Macau o que aconteceu na Praça de Tiananmen em 4 de Junho de 1989, através de testemunhos escritos e fotografias, devia fazer parte da educação cívica de qualquer residente, podendo ajudar à compreensão de diferentes pontos de vista sobre o que aconteceu e dessa forma contribuir para uma maior harmonia entre as diversas comunidades.

Acresce que a referida exposição, e outras de idêntico cariz, têm sido habituais há mais de duas décadas, isto é, desde a transferência da administração de Macau para a China em 20 de Dezembro de 1999, como já eram no tempo da administração portuguesa, e só nos últimos anos começou a ver-se uma presença mais musculada de agentes de autoridade, à paisana e fardados, nas iniciativas promovidas pelas associações, como a do deputado Ng Kuok Cheong, ligadas ao chamado movimento democrático, e que pugnam por eleições livres e com recurso ao sufrágio universal e directo para escolha do Chefe do Executivo. Associações que antes também se bateram para que a escolha dos responsáveis do IAM também se fizesse por recurso a eleições democráticas, e não por nomeação administrativa, tanto mais que, inclusivamente, em Hong Kong existem eleições locais para os órgãos autárquicos.

A erosão das liberdades fundamentais constitui hoje bem mais do que uma evidência, que só não é reconhecida pelos seguidistas convictos e de ocasião, e por aqueles que reconhecendo não o dizem por estarem na dependência do maná económico-financeiro das autoridades de Macau e de Pequim, estando por isso mesmo disponíveis para aceitarem a troca dessas liberdades por pacotes de amendoins e concessões da mais diversa ordem no quadro dos sempre apetecíveis negócios que por aqui vão surgindo. Negócios normalmente assentes no apoio oficial que garante a viabilidade económica de muitos “investimentos” e o enriquecimento da fauna empresarial que normalmente é contemplada com tais negócios. Nada que, em bom rigor, não acontecesse no tempo dos governadores portugueses, em especial na fase final do mandato de Rocha Vieira, em que até as sanitas e os mictórios de alguns empreendimentos vinham da República.

Durante a discussão na Assembleia Legislativa de Macau das Linhas de Acção Governativa (LAG) de 2020, que terminou a semana passada e foram as primeiras apresentadas pelo novo Chefe do Executivo, este prometeu uma aposta na recuperação económica e sanitária e uma profunda reforma da administração pública, há muito carenciada, desvalorizando a necessidade de quaisquer reformas políticas. Ao mesmo tempo enfatizou o empenho “na defesa da segurança nacional através da criação de regulamentação e mecanismos de gestão e execução que contribuam para a segurança“, pugnando por um aumento constante “da qualidade do corpo de polícia”, melhorando a sua “capacidade de acção, persistindo no «reforço do trabalho policial com aplicação da tecnologia».

Esta última vertente esteve, ademais, bem presente quando Wong Sio Chak, o responsável pela Segurança, magistrado que foi antes também director da Polícia Judiciária, e que graças ao protagonismo adquirido no anterior Governo com o cumprimento da “agenda securitária e patriótica” se manteve no actual com a mesma pasta, prometeu, há dias, na Assembleia Legislativa a criação, “com a maior urgência”, de um novo gabinete exclusivamente dedicado à “segurança do Estado”, o que na prática significa quer um aumento do controlo policial do crime, sempre desejado por todos os residentes, mas também o reforço do controlo das actividades de natureza política, o que tem sido notório com as alterações legislativas verificadas nos últimos três anos, com a transferência de competências que antes eram do IAM para a PSP e, ente outros, com o programa “Olhos no Céu”.

Refira-se, ainda, que também foram dadas algumas justificações para o inusitado acto de revogação da autorização para uso dos espaços públicos que se prendiam com a saúde pública, e pela necessidade de manter o cumprimento das exigências de natureza sanitária.

Este argumento não deixa de ser estranho quando há mais de trinta dias não há casos novos de Covid-19, a RAEM tem registo de um trabalho do Governo e dos profissionais envolvidos no terreno notável e exemplar no combate à pandemia (sem mortos), as fronteiras estão na prática fechadas, os residentes estão impedidos de sair de Macau para irem apanhar um avião a Hong Kong sem a realização de uma quarentena prévia ao embarque, ou seja, o mesmo que aconteceu a quem chegava a Macau antes do fecho das fronteiras, cujo funcionamento normal não se sabe quando voltará a ocorrer (só hoje foram levantadas as restrições à entrada de trabalhadores não-residentes que residam na cidade contígua de Zhuhai).

E tal preocupação é pouco compatível com a desregulação total da entrada em autocarros e elevadores, incluindo de edifícios onde funcionam serviços públicos, em que os passageiros se vão apertando como se fossem sardinhas em lata, e sem que haja qualquer preocupação das autoridades quando vêem passar autocarros à cunha e sair pessoas às dezenas de dentro de elevadores apinhados.

Seja, por vezes, de uma forma sub-reptícia, mais disfarçada mas igualmente eficaz, seja em termos tão canhestros como sucedeu com a recente decisão do IAM, certo é que se assiste a um progressivo e reforçado cerceamento dos direitos fundamentais, em especial do direito de reunião e manifestação nas suas diversas vertentes (em matéria de liberdade de imprensa a autocensura é uma prática assumida por muitos), acompanhado de uma cada vez maior intervenção de Pequim na gestão quotidiana de Macau e Hong Kong, através dos "recados" do Gabinete de Ligação, como aconteceu com a realização do Festival Rota das Letras, quando era dirigido por Hélder Beja, pelo que é provável que a realização da tradicional vigília de 4 de Junho, no Largo do Leal Senado, esteja em causa.

O COVID-19, a defesa da segurança do Estado e dos valores do patriotismo e da harmonia são agora o alfa e o ómega da propaganda, os motivos para se mostrar serviço. A propaganda está mais presente do que nunca, penetrando as redes sociais com os novos controleiros e os bufos habituais, sempre activos a criticarem as perspectivas de residentes e não-residentes que fujam às versões oficiais e oficiosas do Gabinete de Comunicação Social, da Xinhua, do Diário do Povo ou do China Daily.

Curiosamente, por agora, tanto quanto se sabe, em Portugal, o Ministro dos Negócios Estrangeiros continua a considerar que o cumprimento da Declaração Conjunta Luso-Chinesa e da Lei Básica de Macau são exemplares.

Os factos demonstram o contrário, mas pode ser que a partir de 22 de Maio, quando ocorrer na capital chinesa a reunião magna anual da Assembleia Popular Nacional, surjam novo dados para as equações de Macau e de Hong Kong.

Interessante será depois saber, perante factos tão cristalinos, até quando os interesses económicos de Portugal, e o servilismo institucional dos políticos, se continuarão a sobrepor à defesa dos direitos e liberdades fundamentais dos residentes de Macau, que é gente de todas as etnias, credos e das mais diversas nacionalidades, vergando-se à agenda da propaganda oficial.

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