O Voto dos Emigrados
A Cristina Torrão já botou a sua profunda indignação com o acontecido com os votos dos emigrantes. E com ela vou solidário. Não irei repetir os seus argumentos mas julgo necessário recordar um facto: no círculo da Europa, de um total de 195.701 votos recebidos, 157.205 foram considerados nulos, o que equivale a 80,32%. 47 anos depois das primeiras eleições deste regime acontece isto! E, pior, sem que haja um sobressalto cívico, um repúdio generalizado face às elites políticas que conduziram a isto.
Os emigrantes foram cantados na gesta antifascista e muito lamentados no gemebundismo socialista dos anos 2010s, pois ditos como se ostracizados por Passos Coelho. E são anualmente incensados no folclore do Dia das Comunidades Portuguesas - abrilhantado neste consulado com a novidade das comemorações itinerantes do 10 de Junho. Mas neste regime o seu voto sempre foi malquisto. Por isso a sua escassa representação parlamentar. Por isso a escandalosa proibição constitucional - desenhada por ilustres constitucionalistas que desde há décadas continuam a opinar, como se democratas exemplares - do seu voto nas presidenciais, malevolência que durou duas décadas. E por isso se mantêm tantas dificuldades logísticas para o seu exercício do voto.
Mas agora não se trata só de isso. Mas sim do devastado estado do Estado. No Inverno de 2021 durante algum tempo Portugal foi o pior país do mundo, em termos absolutos, quanto ao impacto do Covid-19. Nesse período foram organizadas umas eleições presidenciais. Tendo sido aventada a hipótese do seu breve adiamento, para que se esperasse o alijar os efeitos da invernia no impacto da pandemia, foi-nos comunicado que ministério da tutela e assembleia da república tinham deixado passar os prazos legais para se poder propor tal medida. Nestas recentes eleições legislativas, com o país fustigado pela disseminação da variante Ômicron, debateu-se a questão da votação dos infectados e dos colocados em isolamento profiláctico. Foi notório o atrapalhamento das autoridades, mais uma vez acima de tudo devido a uma incúria legislativa.
Agora surgem estas notícias sobre o voto dos emigrantes. Mais de 80% de votos inutilizados no círculo da Europa (não tenho dados sobre o "fora da Europa"). Devido a uma trapalhada legal e correlativa desorganização processual. Tudo isto bem demonstra a irresponsável incompetência com que as eleições são enquadradas pela nossa actual "elite" política.
E sobre essa perversa realidade é importante ouvir esta entrevista do cabeça de lista do PS no círculo "Europa", Paulo Pisco: diz que tinham conhecimento dos defeitos da lei, mas escuda-se no facto de ter havido uma antecipação das eleições para se desculpar pela incorrecta lei. "Até já se tinha constituído um grupo de trabalho", deixa cair. Ou seja, há uma lei eleitoral que é consabidamente prejudicial ao exercício do voto dos nossos compatriotas emigrados. E durante dois anos a Assembleia da República limita-se a constituir um "grupo de trabalho". E face à convocação de eleições antecipadas é apanhada com "as urnas na mão".
E convirá perceber que este homem, que tanto se lamenta por ter(em) sido surpreendido(s) pela antecipação eleitoral, acaba de ser eleito para a sua... 6ª legislatura, como deputado da emigração! Convirá também perceber que Augusto Santos Silva, que tem duas décadas de exercício ministerial, foi não só ministro dos Negócios Estrangeiros - com a tutela das formalmente sacrossantas "Comunidades Portuguesas" - nos últimos 6 anos, como também encabeçou a lista do seu partido no círculo "Fora da Europa". Mas, ao que parece, também nada sabia sobre esta situação, e nada fez para a resolver.
No final de tudo isto é interessante perceber o que os dois partidos estruturantes do regime, e que sempre dividem os meros 4 deputados da "emigração", fazem: o PSD agarra num patético, anacrónico e, provavelmente, ilegal procedimento eleitoral e provoca este rombo democrático que é a anulação de 80% dos votos expressos. Mas não teve tempo nem oportunidade para propor uma alteração legislativa ou uma organização dos procedimentos eleitorais. E o PS, também distraído destas coisas, não contestará esta anulação. Pois, como vergonhosamente diz este veterano deputado Pisco, "como os resultados não se alteram não vale a pena". Ou seja para este Pisco não vale a pena contabilizar, considerar, respeitar, 157 205 decisões dos seus compatriotas! Desde que o (já aquecido) lugarzito lhe esteja garantido. É esta a sua mentalidade. É este o tipo de "democrata" que o parlamento alberga.
Entretanto, acabou-se o dia. E nem Sua Excelência o ministro dos Negócios Estrangeiros em exercício, o deputado eleito pelo círculo "Fora da Europa", prof. Augusto Santos Silva, nem Sua Excelência o Presidente da República, o loquaz prof. Marcelo Rebelo de Sousa, se pronunciaram sobre esta vergonha. Da qual são profundamente responsáveis. Silva seguirá sibilino, no Rilvas ou em São Bento. E Sousa tirará auto-retratos enquanto perora inanidades sobre a heróica "identidade nacional".
Ao menos Rio asneira(va) em alemão...