O video da semana e uma certa esquerda presa no seu próprio labirinto
O video da semana mostra uma mulher que percorre as ruas de Nova Iorque durante 10 horas. A jovem mulher é abordada constantemente. Como a Fernanda Câncio sublinha, o que o vídeo evidencia é o carácter repetitivo, importunador, exasperante do "piropo". Mostra como sair à rua é, para qualquer mulher, um estado de alerta permanente, o de quem sabe que a qualquer momento pode ser abordada por um estranho com ofertas de sexo e sujeita a apreciações, mais ou menos alarves, sobre o seu aspeto. Esta parece ser uma descrição objectiva dos factos. Seria, portanto, de esperar que a partir deles se gerasse um amplo movimento de condenação das atitudes retratadas no video. E que essa condenação fosse consensual nos sectores à esquerda do espectro político, que reivindicam para si o património histórico da promoção dos direitos das mulheres. Surpreendentemente, nomeadamente nos EUA, é da própria esquerda que chegam vozes que questionam as conclusões aparentemente óbvias que resultam do video. O problema, ao que parece, reside no facto de a protagonista ser uma mulher branca. E de as abordagens filmadas serem quase sempre protagonizadas por homens de raça negra. Não tardaram vozes como a de Kristin Iverson que denuncia no video uma clara intenção de defender e proteger "a mulher branca inocente", isto é, a "estrutura social de poder existente". Rapidamente o argumento foi mais longe. E logo surgiu quem afirmasse que o video tem claros propósitos racistas. Dion Rabouin di-lo com todas as letras: há uma clara intenção de passar a ideia de que as mulheres brancas não estão a salvo de "sex-crazed black and brown men". Na escalada de argumentos, Aura Bogado refere um viés intencional no video: as filmagens teriam sido feitas deliberadamente em bairros em que os residentes são maioritariamente negros com o objectivo de perpetuar o mito de que estes são os responsáveis por todos os aspectos negativos da humanidade e que é preciso salvar a mulher branca. A solução seria, ao que parece, filmar um novo video com um elenco universal, em que a protagonista seria "a black trans woman". Mas houve quem fosse ainda mais longe. Emily Gould justifica as abordagens como sendo uma forma de grupos marginalizados ajustarem contas com quem (a estrutura social de poder branca existente) os condena a estarem à margem. As ondas de choque foram de tal forma intensas que o grupo Hollaback que promoveu a divulgação do video já veio a público reconhecer que este pode ter ferido a susceptibilidade de alguns sectores mais sensíveis. Como refere Charles Cooke na ampla resenha que faz sobre o assunto, o que subjaz à incomodidade provocada pelo video nestes sectores é a ideia, também tão cara da esquerda, de que os autores das abordagens são meras vítimas das circunstâncias e que foram forçados, pelas suas condições, a importunar uma mulher branca inocente. O problema é que a injustiça não se apresenta, na realidade, em silos estanques e segmentados. As camadas de injustiça sobrepõem-se, interpenetram-se e multiplicam-se. E essa esquerda que se esqueceu das grandes ideias gerais como a igualdade e cedeu ao apelo da apropriação da injustiça minoria a minoria, caso a caso, perdeu-se no seu próprio labirinto. Daí que lhe falte critério quando é confrontada com escolhas definitivas: radicalismo islâmico ou direito das mulheres. Radicalismo islâmico ou direito à orientação sexual? Direitos das mulheres (sejam elas brancas, baixas, altas ou negras) ou paternalismo para determinados comportamentos?