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Delito de Opinião

O tirano "satisfecho"

Pedro Correia, 23.07.14

 

Senti hoje vergonha, como português, ao ver o Presidente Cavaco Silva e o primeiro-ministro Passos Coelho na cimeira da CPLP, em Díli, que aclamou o ditador da Guiné Equatorial, ali presente na qualidade de dirigente de um novo estado-membro da organização.

Esta adesão adultera profundamente a essência da CPLP, comunidade de nações que têm por base o nosso idioma comum, um dos mais falados do mundo. Ora ninguém na Guiné Equatorial fala português -- a começar por Teodoro Obiang, que assistiu aos trabalhos com auriculares que lhe asseguravam a tradução simultânea e no final, questionado pelos jornalistas, se limitou a dizer que se sentia "satisfecho".

 

Como português, sinto-me envergonhado por verificar que somos os primeiros a desprezar a lusofonia -- o poderoso traço de união que nos irmana com povos espalhados por diversas partes do mundo e com os quais mantemos afinidades de séculos -- enquanto miramos, embasbacados, as virtualidades da "diplomacia económica" que fazem de qualquer facínora nosso interlocutor desde que tenha muitos barris de petróleo para exportar.

Se é a parceria económica que interessa, saibamos ao menos pensar em grande: porque não acolhemos desde já na CPLP a Índia e a China, em cujos territórios existem milhares de lusofalantes devido aos nossos vínculos históricos com Goa e Macau (para quem não saiba, a língua portuguesa mantém-se como língua oficial de Macau pelo menos até 2049)?

 

Sinto-me envergonhado, acima de tudo, por verificar que a partir de agora Portugal terá de dialogar em plano de igualdade com um dos maiores déspotas da história de África, há 35 anos no poder sem respeitar os mais elementares direitos humanos.

Ao integrar a Guiné Equatorial, a CPLP começa por violar as suas bases programáticas:  o artigo 5º, nº 1, e) dos seus estatutos estabelece com clareza que a comunidade é regida pelo "primado da Paz, da Democracia, do Estado de Direito, da Boa Governação, dos Direitos Humanos e da Justiça Social" (em iniciais maiúsculas no original).

Obiang esmaga a imprensa livre, esmaga a oposição, esmaga quem reivindica reformas no seu regime, um dos mais corruptos do planeta. Está na lista dos dez países com menor liberdade de imprensa do mundo, apresenta o quarto maior índice mundial de mortalidade infantil. E mantém em vigor a pena de morte, como têm denunciado organismos prestigiados -- a começar pela Amnistia Internacional e pelo Observatório dos Direitos Humanos. «Corrupção, pobreza e repressão continuam a ser pragas na Guiné Equatorial sob o regime de Teodoro Obiang», salienta esta última organização num relatório elaborado já este ano.

 

O tirano está "satisfecho", claro. Queria ser tratado como estadista e acabámos por fazer-lhe a vontade. Num idioma que ele nunca aprendeu e continuará a ignorar olimpicamente.

Uma vergonha, tudo isto.

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