O silêncio do nosso governo diante de Moçambique
Há dias aqui referi o demasiado longo (relativo) silêncio da imprensa portuguesa sobre a situação política em Moçambique, originada por mais uma mega-fraude eleitoral, a qual veio na sequência de uma crescente criminalização do Estado e enorme aumento da pobreza no país. Mas nos últimos dias, e finalmente, tanto a imprensa escrita como a audiovisual tem incrementado as referências a essa situação. A qual é um verdadeiro estertor de uma autocracia cleptocrática, um "Outono do Patriarca", para convocar esse monumento de Garcia Marquez. E que tem provocado já dezenas de mortos e centenas de feridos devido à repressão policial - e aduzo que no país a polícia está mais equipada do que o exército, ao invés que é habitual, devido ao processo de reorganização acontecido após a guerra civil.
Mas por cá continua o silêncio político. Alguns partidos têm referido o assunto (BE, CHEGA, IL), mas o "centrão" cala-se.
Sobre o assunto nada há a esperar do Presidente Rebelo de Sousa, cuja superficialidade é consabida. E extremada quando sobre Moçambique - eu lembro a minha estupefacção, irada, no seu primeiro empossamento, pois convidou apenas três chefes de Estado: o espanhol, o brasileiro e... o moçambicano. Isto quando o poder de Maputo fazia já inaceitáveis razias no centro do país, para além da deriva cleptocrática instalada. E recordo que ainda há pouco, já na sequência de outras visitas sem objectivos políticos discerníveis, Rebelo de Sousa foi a Moçambique, destemperadamente, inaugurar um hotel de um grupo português. Não só em plena vigência deste degenerado poder, não só após a crise diplomática entre os países devido à indiferença do governo moçambicano face ao assassinato de um empresário português no centro do país, acontecido por razões militares. Mas, ainda por cima, 15 dias depois da associação de Maputo a uma posição "neutral" face ao imperialismo russo. Ou seja, é normal o desatino de Rebelo de Sousa nestas questões.
Mas os partidos do centro podem actuar. Em tempos aqui muito saudei a excepcional intervenção do então eurodeputado Paulo Rangel, que no Parlamento Europeu esteve imensamente bem ao colocar no centro de debate político internacional a questão do Cabo Delgado e da inacção do governo de Maputo. Foi uma acção parlamentar - que surtiu efeitos - que muito honrou a carreira política de Rangel.
E lembro que também nessa altura Paulo Rangel dedicou um acertadíssimo artigo no Público sobre a questão do Cabo Delgado. Criticando a tibieza do governo português. Recupero algumas das suas acertadíssimas palavras, pois tão adequadas são ao actual governo e ao actual ministro dos Negócios Estrangeiros: "A actuação do governo português é tíbia e decepcionante. Limita-se a declarações, quase extorquidas a ferros, do ministro dos Negócios Estrangeiros. Fala no papel da CPLP, mas ninguém ouve falar dela. Em Bruxelas, é tal a timidez dos esforços de Portugal, que ninguém diria que está em jogo a vida de centenas de milhares de cidadãos de um país irmão." E mais: "Nem só o nosso Governo decepciona; também a esfera pública e a sociedade civil desiludem. Diante de crimes tão ominosos, como é explicável este silêncio brando, esta letargia conformada e conformista?"
Abaixo transcrevo um bom texto sobre o assunto, publicado na "Sábado", da autoria de João Carlos Batalha, o "Volta para o silêncio, Moçambique" (disponível para assinantes).
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Volta para o silêncio, Moçambique
Por: João Carlos Batalha, in Sábado
A cumplicidade suja com o roubo sangrento de Moçambique é mais uma mancha de vergonha para Portugal.
A geração anterior à minha não se apercebeu disto, e a seguinte voltou a esquecê-lo. Mas, nascido em 1978, a primeira vez que soube que existia no mundo um sítio chamado Timor-Leste foi em novembro de 1991, quando o massacre de Santa Cruz trouxe esse território longínquo de novo para os olhos de Portugal e do mundo. Por essa altura – tinha eu 13 anos – já as aulas de História na escola me tinham ensinado a ladainha do Portugal país de heróis, que deu novos mundos ao mundo e que espalhou a língua e a concórdia pelas sete partidas. Já me tinham mostrado no mapa todas as ex-colónias africanas (nem todas; não referiram o Forte de S. João Baptista de Ajudá, essa capital do ridículo). Mas sobre Timor, nem uma palavra. Nem na escola, nem em casa, nem no país. Portugal, esta entidade com um talento instintivo para a cobardia organizada, varreu o abandono de Timor e dos timorenses para debaixo do tapete da vergonha coletiva, e a geração nascida imediatamente a seguir à descolonização nunca sequer ouviu falar do lugar. Isto nem é uma crítica à descolonização que, pelas circunstâncias em que foi feita, dificilmente podia ter saído melhor. É uma crítica, ou um lamento, à nossa queda para a amnésia seletiva. À nossa tendência para, usando a expressão muito portuguesa, existirmos no mundo com "muito medo e pouca-vergonha".
Ontem Timor, hoje Moçambique. Mais de um mês depois das eleições presidenciais e legislativas naquele país e quase três semanas depois do anúncio de resultados obviamente fraudulentos que atribuíram a vitória à Frelimo, partido no poder desde a independência, há quase 50 anos, o Estado português continua a assistir silencioso à repressão brutal das manifestações de protesto do povo moçambicano, que se saldaram já em dezenas de mortos e centenas de feridos. Venâncio Mondlane, o candidato cuja vitória foi roubada pelo regime, está fugido do país, em parte incerta, depois de, ainda antes do anúncio oficial dos resultados, o advogado e um mandatário da sua candidatura terem sido assassinados com rajadas de tiros na via pública.
Em Moçambique, um país capturado por um partido único transformado numa máquina voraz de corrupção e rapina, a democracia está a ser assaltada por rajadas de metralhadora e disparos de gás lacrimogéneo. O que faz o Governo português? Acompanha "com grande preocupação", nas palavras moles e prudentes do ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel. Não é a primeira vez que a Frelimo falseia resultados eleitorais para se manter no poder, só que desta vez os moçambicanos estão mesmo fartos e mobilizaram-se em torno de Mondlane, um candidato da oposição que, pela primeira vez, conseguiu romper a hegemonia do partido-Estado.
No momento em que Moçambique mais precisa do apoio internacional para resgatar a sua democracia, os apelos do Governo português à contenção e ao diálogo são demasiado pouco, demasiado tarde. A CPLP é a inutilidade habitual, incapaz de tomar uma posição clara e assertiva sobre as violações eleitorais testemunhadas pela sua própria missão de observação. Em Portugal, o Presidente da República saúda e aplaude a passividade do Ministério dos Negócios Estrangeiros no mesmo fôlego em que invoca o estatuto sentimental de Moçambique como sua "segunda pátria". Marcelo Rebelo de Sousa limita-se a desejar que "tudo corra pelo melhor", semanas depois de ser óbvio que está a correr pelo pior. No Parlamento, Chega, Iniciativa Liberal e Bloco de Esquerda apresentaram projetos de resolução apelando ao Governo para que não reconheça os resultados eleitorais e faça pressão para que o roubo da eleição seja investigado e os verdadeiros resultados divulgados. É o mínimo, mas continuamos à espera de que alguém no Governo se comova.
Ontem Timor, hoje Moçambique. Portugal tem uma relação sombria com os seus "países-irmãos", que consiste na cumplicidade vergonhosa com os piores abusos, em troca de uma participação, mesmo que modesta, no saque, embrulhada em plácida contenção e sentido de Estado dos partidos no poder. Em Maputo, a Frelimo está a carimbar com sangue a repressão à vontade popular dos moçambicanos, reforçando a sua captura de um país martirizado pela pobreza e pela corrupção. Não tarda, o trabalho estará feito, os mortos enterrados e os negócios, de novo, de vento em popa. Com que cara os portugueses encararão os seus "irmãos" de Moçambique, não me perguntem. Com o nosso talento para o realismo, a próxima geração não se lembrará de nada.