O segredo da simplicidade
"Ninguém é imune aos efeitos do poder, ninguém! Isso é doença da juventude que o tempo cura. Quem resiste ao canto de sereia do poder é porque não se aproximou dele o suficiente para o ouvir com clareza"
"O poder é mal compreendido, amigo Vieira. As pessoas acham que os homens só se vendem por um poder superlativo, o dos grandes estadistas, das celebridades, quando a maioria não resiste sequer à oportunidade de ser sádico por uns instantes. Ter alguém à nossa mercê. Consegue imaginar o que isto representa para quem nunca teve nada, pessoas incapazes de se furtarem através da imaginação, do sonho, à sua realidade miserável? Homens que não conhecem o amor, a entrega ao outro, a cedência voluntária do domínio? "
Há uns meses, na sequência de um evento em que participei, tive o ensejo de poder conhecer e conversar com o autor. Na altura, por múltiplas razões que não vêm ao caso, ainda não tinha podido pôr os olhos sobre o seu último trabalho, o que me deixou relativamente constrangido nesse encontro. Dar de caras com o autor num evento literário, com ele tomar uma refeição e nada ter para comentar sobre o seu livro porque ainda não se leu, é sempre um momento de angústia para leitor que se preze.
Nas últimas semanas pude corrigir essa lacuna, depois de uma breve mas gratificante viagem pelo paraíso para onde o Bruno me conduziu. Não tenho a pretensão do majestático porque se muitos olhos leram o mesmo, poucos seguem o mesmo percurso. É como quando seguimos sentados à janela de um comboio: quem vai atrás de mim ou está sentado no banco imediatamente à minha frente dificilmente verá o que eu vejo. E fá-lo-á sempre com outros olhos. As linhas que conduzem os meus olhos podem convergir por momentos com as que chegam de outros, mas cada uma segue depois o seu caminho. E nunca se interceptam.
Com a leitura passa-se igual fenómeno. A beleza dos grandes espaços, a profundidade de uma vista desafogada, a lavagem do espírito pela leitura está na facilidade com que se alcança a distância vendo-se tudo com olhos de ver. E, no entanto, aquilo que vejo e construo é tão irrepetível quanto o tempo. Quando a leitura se perde na generosidade da escrita, fluindo página a página, entre imagens e pensamentos, por simples factos, reflectindo episódios da vida de todos os dias, personagens que de uma forma ou de outra sempre povoam a infância, ou podiam ter povoado, noutro lugar e noutro tempo, então existe um denominador comum, aquele que marcará sempre a diferença entre o bom e o menos bom, entre o que me acolhe e me conforta e aquilo que me afasta de um livro ou de um autor. Refiro-me à simplicidade, verdadeiro segredo da grandeza de um texto, da construção de um poema, da perenidade de um livro.
Nunca estive em Novo Redondo. Nunca estarei em Novo Redondo. Novo Redondo já não existe. Existe um outro lugar no tempo presente. E apesar de tudo fui a Novo Redondo. Há um lugar que foi Novo Redondo, há o Barreiro, como há o 27 de Maio em Luanda, toda aquela gente, o BMX (sempre sonhei ter uma), a família complicada, de "hierarquias confusas, obediências, silêncios, recriminações", como há outros espaços de deambulação na escrita do autor, que de repente me recordo de ter percorrido com ele, espaços onde "o sentido vertebral do dever" se confunde com a galhofa e a amizade cimentada pelo pontapés numa bola e os momentos de recolhimento perante a imagem perturbadora de uma "labareda de alegria e vivacidade".
Até quando descia a alameda da minha faculdade e percorria iguais caminhos, sentando-me nos mesmos cafés, discutindo os filmes de sempre, entre humor e risos, enquanto saboreava a imperial. Na passagem pelos arquivos, na reconstituição do percurso processual do João Jorge, na via-sacra das secretarias judiciais, onde o papel se confunde com o pó, até ao reencontro com o ofício que a Anabela, reproduzindo umas das mais vergonhosas expressões da nossa burocracia, que se repete exaustivamente nas mais diversas circunstâncias sem que quem a utilize se dê conta da sua falta de sentido, pirosismo e incorrecção ("somos a informar"), comunica a localização do processo.
Como escreve o Bruno, quando se sabe que "[c]ada homem está pendurado num fio", quando se tem a consciência de que "o abismo pode abrir-se por baixo dele a qualquer momento" e, muitas vezes, só numa morgue é que um cidadão como o João Jorge pode, enfim, recuperar a dignidade, acaba por ser reconfortante sentir, porque de um sentimento se trata, que "a memória é um bem dos poderosos". E este torna-se o valor mais importante do livro, a sua taluda. Uma taluda ao alcance de qualquer um e que se completa com o rigor de uma escrita simples, directa, cristalina, em português "pré-acordo" e com a chancela da Quetzal.