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Delito de Opinião

O revolucionário burguês

Cristina Torrão, 25.07.22

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Otelo Saraiva de Carvalho era uma figura cheia de contradições e, por isso mesmo, polarizava, como se viu por ocasião da sua morte. Passado um ano, venho relembrar uma reportagem publicada na revista Sábado, a 9 de Setembro de 2021.

Otelo casou com Maria Dina Afonso Alambre a 5 de Novembro de 1960. Tiveram duas filhas e um filho. Quando Otelo confessou à mulher que, apesar de ainda a amar, amava igualmente outra, o casamento manteve-se. Maria Filomena Outeiro, divorciada, funcionária administrativa na cadeia de Caxias, conheceu Otelo quando ele aí esteve preso, na segunda metade da década de 1980. Otelo e Dina estiveram perto do divórcio, mas, segundo a reportagem da Sábado, «algo estranho se foi instalando com o tempo» e «Otelo assumiu publicamente as suas duas mulheres».

Quando esta reportagem foi publicada, segui uma pequena discussão, no Facebook, entre quem condenava a situação, por significar a subjugação de duas mulheres por parte de um homem, e quem dizia não ver ali nada disso. Afinal, a esposa tinha conhecimento, as duas mulheres conviviam pacificamente com o triângulo amoroso, eram três adultos que tinham tomado uma opção de vida. Elogiava-se, acima de tudo, a rejeição das normas burguesas, tradicionais.

No próprio texto da reportagem, se lia este ser «um a(c)to de enorme generosidade e de amor», por parte de Dina, «por muito que cause secreta repulsa na moralidade vigente, fértil território da religião, por incompreensível que possa parecer ainda hoje».

No entanto, atendendo a outros pormenores do artigo, vemos que não foi assim tão pacífico. Na página 33, na legenda de uma fotografia de Sérgio, o filho de Otelo Saraiva de Carvalho, diz-se que ele «teve grandes dificuldades em conviver com a vida dupla do pai. Após a morte da mãe, os problemas continuaram, quando Otelo se mudou em definitivo para a casa de Mena». Mais à frente, lê-se que «por causa desta mudança, Otelo terá perdido o contacto pessoal com os filhos, que nunca encararam bem esta vida dupla do pai». Fala-se igualmente de «ressentimentos que ficaram (…) O apartamento de Carnaxide era uma barreira intransponível para eles, que nunca tiveram relação com a outra família».

A alusão a «ressentimentos» e ao desconforto sentido pela filha e pelo filho de Otelo em relação à vida dupla do pai (uma das filhas morreu ainda criança) denota que a mãe deles, apesar de se ter acomodado, estava longe de viver pacificamente com a relação a três. E transmitiu essa revolta aos filhos (mesmo que involuntariamente). Caso houvesse uma aceitação sem reservas, o assunto não seria tabu, as duas famílias talvez tivessem até contacto, pelo menos, os filhos, que não sentiriam tanta repulsa.

Rejeição da «moralidade vigente, fértil território da religião»? Parece-me precisamente o contrário. No Portugal salazarista (e não só), sempre houve casos de homens com vida dupla, com conhecimento, ou não, das esposas. Caso estas soubessem, aceitavam, na maioria dos casos, engolindo a revolta. Afinal, raramente um homem era condenado pela sociedade por tal motivo.

Ou seja: o obreiro do 25 de Abril era um verdadeiro embaixador da estrutura patriarcal, dono de uma mentalidade bem tradicional e burguesa.

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