O réu insolente
Achei a notícia curiosa e, armado de paciência e coragem, fui ler o acórdão. Ainda é pior do que o que é costume: prolixo, redundante, aqui e além com redacção descuidada (incluindo o irritante hábito de, ocasionalmente, atirar vírgulas ao ar e deixá-las ficar onde caem) e, sobretudo, interminável.
Tão interminável que não li até ao fim, ainda que a história não seja particularmente complicada. Como se diz na peça, que resume adequadamente o assunto:
O homem foi detido em 18 de março de 2019, juntamente com o pai, por alegadamente terem obrigado dois indivíduos a trabalhar durante 11 anos seguidos sem nunca lhes terem pago e a viver em condições precárias de alojamento e higiene, tendo ficado sujeito à medida de coação de prisão domiciliária.
Mais tarde, foi pronunciado e julgado pela prática de dois crimes de escravidão, dois crimes de tráfico de pessoas e um crime de abuso de confiança, tendo sido absolvido de todos os crimes por acórdão datado de 19 de dezembro de 2019, data em que foi revogada a medida de coação e restituído à liberdade.
Esteve preso em casa durante mais de 9 meses (salvo umas ausências autorizadas a certas horas do dia para tratar de um rebanho de ovelhas) e, como foi absolvido das acusações, veio pedir uma indemnização ao Estado. O acórdão condena o Estado (ainda que em valor inferior ao pedido) em pouco mais de 126 Euros por dia de prisão, fora os danos apurados, estes de resto segundo critérios demasiado exigentes – os tribunais portugueses distinguem-se por atribuir indemnizações miseráveis.
Há várias coisas curiosas neste processo, desde logo por que razão se mantêm duas pessoas confinadas à espera do julgamento de um caso que não requereria mais de umas duas semanas a apreciar, e mesmo isso por causa da necessidade de ouvir as testemunhas – o assunto só é complicado porque o fazem ser e porque o funcionamento dos tribunais, em vez de ser regulado segundo os ensinamentos da especialidade de organização e métodos, o é segundo o palpite desastrado e ignorante do legislador, funcionários, magistrados e advogados, tudo com o pano de fundo da tradição – é assim porque sempre assim foi.
Mas há mais. Esta sentença revoga outra, da primeira instância, que não apenas não dava um cêntimo ao inocentado como o condenava a pagar um xis por litigância de má-fé. Fantástico: um tipo que esteve preso durante nove meses não tem direito a nada e ainda deve pagar uma multa porque – pasme-se – reclamou e na acção exagerou numas coisinhas.
A argumentação do Ministério Público é deliciosa. Nas palavras do magistrado:
De facto, como se pode pretender que sejam tomadas decisões livres, quer na perspectiva da aplicação das medidas de coacção, quer na perspectiva da decisão final do julgamento, quando uma decisão absolutória, sem mais, poderá acarretar a responsabilidade civil do Estado e o eventual direito de regresso sobre os Magistrados?
O magistrado do MP acha que nas medidas de coacção não pode em princípio haver erros porque os magistrados estão exornados de uma clarividência divina mas, se os houver, a vítima, depois de se defender da acusação em tribunal, tem de provar que não cometeu os crimes pelos quais foi absolvido, e isto não segundo o princípio in dubio pro reu mas um inovador que seria, devidamente traduzido em Latim, o Ministério Público não tem de provar as acusações – os réus é que têm, para o efeito de serem compensados por erros ou abusos, de fazer a prova negativa que, como se sabe e o magistrado aparentemente ignora, é frequentemente muito difícil. E é claro que a invocação do direito de regresso por parte do Estado é um despropósito: Há muitos casos desses? Não? É pena, se houvesse talvez o Ministério Público pensasse um bocadinho melhor antes de propor trancafiar pessoas. E é claro que os magistrados judiciais não podem ser objecto do exercício do direito de regresso porque isso feriria a independência e irresponsabilidade do poder judicial – estatuto que o Ministério Público pode imaginar que tem mas é opinião, para dizer o mínimo, muitíssimo discutível.
Duas notas finais:
Sabemos quem foi o relator do acórdão absolutório da Relação de Coimbra porque essa informação consta no site. Mas não sabemos quem foi o juiz que absolveu dos crimes, nem quem recorreu dessa decisão, nem quem convalidou a prisão domiciliária (o termo exacto não é “convalidar”, creio, mas como se deve perceber frescuras jurídicas não são a minha especialidade), nem quem decidiu que não havia direito a indemnização. Conviria talvez que todos percebessem que a majestade da Justiça não é a majestade dos juízes, e menos ainda a dos magistrados do Ministério Público, pelo que seria boa ideia identificá-los. Era o que mais faltava se administrando a Justiça em nome do Povo nem sequer precisássemos de saber quem são.
A Justiça é o maior falhanço do regime, opinião pacífica em artigos de opinião, em particular os de António Barreto, que com duas fundas rugas de ansiedade cavadas na fronte aflita costuma fazer descrições exactas e as perguntas certas, às quais infelizmente não se dá ao excessivo trabalho de arriscar respostas. E é claro que temos direito tradicional a discursos dos mais altos magistrados queixando-se de falta de meios e do excesso de direitos da defesa, enquanto o mais alto da Nação se alivia de agudas profundidades significando nada. Porém, a razão da falta de meios nos tribunais administrativos e fiscais está identificada – não interessa ao Estado (isto é, no caso a AT e o Governo) que as pendências sejam julgadas em tempo útil; e o “excesso” de direitos não seria um grande óbice se os incidentes e os recursos fossem resolvidos e decididos celeremente.