O regresso da idade das trevas
Ainda há dias, quando passou mais um aniversário sobre os acontecimentos de Tiananmen, publicámos aqui uma foto tirada por um académico de Macau. Pois bem, numa decisão inédita, o professor de Ciência Política e senior lecturer of Asian Politics da católica Universidade de S. José acaba de ser despedido, sem apelo nem agravo, pelo reitor, o padre Peter Stilwell.
Eric Sautedé tem sido nos últimos anos uma das vozes mais respeitadas da Universidade de S. José, e até há bem pouco tempo muitas das suas opiniões eram publicamente divulgadas pela instituição no seu Facebook, incluindo a visão daquele sobre múltiplos assuntos, nomeadamente sobre as eleições para a Assembleia Legislativa de Macau. Para além de dedicar o seu tempo ao ensino, Eric Sautedé colabora regularmente com um diário local, o Macau Daily Times, onde assina uma coluna de opinião.
Pois bem, a partir de 11 de Julho, numa decisão muito pouco cristã, Sautedé, ao fim de sete anos, deixará de dar aulas na Universidade de S. José por decisão do reitor Peter Stilwell. Depois de ter invocado para o afastamento do académico o facto daquele não ter ainda completado o doutoramento, argumento que não colheu, Stilwell "escorregou" e veio afirmar que "se há um docente com uma linha de investigação e intervenção pública, coloca-se numa situação delicada". E acrescentou que "[t]rata-se de clarificar as águas. Há um princípio que preside à Igreja de que não intervém no debate político dos locais onde está implementada".
Acontece que é esta mesma universidade que dá as boas-vindas aos estudantes afirmando que "the University has strategically elected to be a university on the cutting edge of ideas and knowledge, defined by its adherence to humanitarian and humanistic values and principles, bound to the development of autonomous and creative thinkers, pledged to the highest forms of learning, teaching and research, and committed to the promotion of life, education and culture", e foi o actual reitor quem escreveu que o programa de ensino da universidade "provide students with the essentials of their major field of knowledge, but include modules to broaden their outlook on the world and stimulate creative thinking. We care for the competence of our graduates in their future professions, but our privilege and mission is to introduce them to a university environment where they learn to analyze, question, evaluate and decide in the context of consciously assimilated values and culture".
O Bispo de Macau diz não ter sido informado do afastamento de Eric Sautedé, embora presida à Fundação que detém a Universidade de S. José e da qual fazem parte três pessoas com cargos políticos. É o caso de Lionel Leong, membro do Conselho Executivo, Dominic Sio, deputado nomeado, e Eric Yeung, delegado à Conferência Consultiva Política do Povo Chinês.
Entrevistado pela Rádio Macau e questionado sobre a sua atitude e aquela que tem sido a posição da Universidade Católica, em Portugal, designadamente quanto a alguns dos seus professores que, à semelhança de Sautedé, têm lugar na academia e assumem posições críticas no debate político, como João César das Neves ou João Pereira Coutinho, o reitor veio dizer que Portugal não é Macau. O reitor Stilwell foi mesmo mais longe e referindo-se à actividade de Eric Sautedé, enquanto professor de Ciência Política, declarou que se podem estudar os sistemas políticos e a Lei Básica, mas que aos docentes (staff) não deve ser permitido intervir nos assuntos correntes políticos e da governação porque existe uma linha muito fina que torna difícil a separação entre a intervenção política e o comentário académico.
Na Universidade de S. José já foram tomadas posições de apoio e solidariedade para com Eric Sautedé, temendo-se agora o despedimento da sua mulher, que também integra os quadros daquela instituição académica.
Tudo isto acontece quando o Chefe do Executivo de Macau, tendo sido confrontado com crescentes posições críticas saídas de dentro das universidades e a reacção precipitada destas, que para além do despedimento de Sautedé já incluem a suspensão do politólogo Bill Chou, da Universidade de Macau, veio dizer que não houve quaisquer instruções do executivo para serem tomadas atitudes persecutórias dentro das universidades e que é natural que dentro das escolas seja estimulado o espírito crítico dos estudantes.
A imprensa de Macau já reagiu ao sucedido, primeiro pelo Ponto Final, hoje também no Macau Daily Times e no Hoje Macau. Ao que consta, tudo se deve ao facto do reitor entender que posições públicas críticas para com o governo de Macau por parte de académicos da casa poderem inviabilizar as chorudas benesses com que a instituição conta para desenvolver o seu novo campus académico.
Ou seja, tudo se resume, em termos muito básicos, a trocar a liberdade de expressão, o espírito crítico, a autonomia universitária, por um prato de lentilhas, sendo que nesta questão o reitor quis ser mais papista que o Papa.
Num momento em que a sociedade de Macau mais precisava de instituições fortes e de uma igreja activa e actuante, ao lado da sociedade e dos seus fiéis, os péssimos exemplos que chegam da Universidade de Macau e, agora, da Universidade de S. José e do seu reitor são uma vergonha e causam repugnância à luz do legado histórico e civilizacional de Portugal. E no caso da Universidade de S. José também envergonham a própria Igreja, que em Macau nunca se coibiu de manifestar as suas posições no passado, como sucedeu pela pena do padre Luís Sequeira ou até de Monsenhor Teixeira. E essa atitude é na sua essência ofensiva da herança de homens que dentro da Igreja, nestas questões, souberam estar à altura do seu tempo, como D. José Policarpo, D. Manuel Martins ou até D. António Ferreira Gomes, que pagou com o exílio o seu amor à verdade.