O Regresso da Educação para a Cidadania
Devido a recente decisão jurídica voltou à berlinda o caso dos irmãos Rafael e Tiago Mesquita Guimarães - cujos encarregados de educação impedem de frequentar a disciplina liceal "Educação para a Cidadania" e que por isso se deparam com o intuito estatal de os reprovar. Em tempos já muito se escreveu sobre o assunto e não será necessário repetir argumentos [eu botei aqui o que penso sobre a algo desajustada disciplina]. Em relação às (improváveis) sanções que os alunos poderão sofrer julgo muito certeiro o que diz Henrique Pereira dos Santos no Corta-Fitas: se cumpre aos encarregados de educação prover à conclusão da escolaridade obrigatória (esta entendida como um direito inviolável das crianças) então essas hipotéticas sanções deveriam incidir sobre estes pais e não sobre os alunos que cumprem os ditames dos seus progenitores. Um pouco à imagem - salvaguardadas as óbvias diferenças - do que acontece em casos de precoce abandono escolar ou em casos de denúncias do corpo docente de indevidas práticas paternais que impeçam a consecução escolar. Mas julgo (e espero) que este é um novelo em que o Estado acabará por se retirar, cedendo a esta idiossincrasia familiar. Com a qual pouco simpatizo, independentemente do que penso da disciplina curricular em causa, pois muito me parece um finca-pé algo histriónico.
Como disse em tempos fui ver o que continha o currículo da tal "Educação para a Cidadania" e não me pareceu a tal obra do Demo que muitos apregoam. Será uma espécie de "albergue espanhol" temático cuja execução prática muito dependerá do tom dos respectivos docentes - e nisso será possível que sobre um ou outro desses temas haja docentes, em especial oriundos de certas licenciaturas em ciências sociais, a utilizar jargão e a enfatizar assuntos mais em voga nas agendas mediáticas, o que pode irritar alguns encarregados de educação. Mas, de facto, pouco ou nada poderá perverter os petizes, muito mais apenas afrontando algumas (legítimas) certezas paternas. Ao ler os materiais que então encontrei acima de tudo incomodei-me com dois assuntos, que agora sumarizo: 1) o veicular da ideologia liberal e de um paupérrimo individualismo através da consagração da mitologia do "empreendedorismo", sempre avessa ao necessário enquadramento sociológico das práticas sociais. Trata-se de uma perversa "formatação" intelectual dos jovens, moldando a forma como entenderão a economia e a sua futura inclusão (deste modo alienada) no mercado laboral, que muito me surpreenderia por não ser refutada pelos locutores da "esquerda" portuguesa que muito defendem esta disciplina, se não soubesse terem estes deslizado para o "patois" identitarista; 2) uma ênfase na virtude das relações homossexuais - inclusa no necessário e saudável esforço social de combater os perversos preconceitos contra a homossexualidade - que, notoriamente, ombreia com a associação das relações heterossexuais a fenómenos de violência social, e sendo nesse âmbito patente a ausência curricular da apresentação de dimensões virtuosas das formas socialmente dominantes de reprodução social e biológica, as famílias. E friso que não seria preciso utilizar a Escola para sacralizar o Presépio Patriarcal para realizar este último aspecto formativo. Mas é evidente que no programa desta disciplina - num país de monoparentalidade crescente e de enorme taxa de divórcio (uma das maiores causas de empobrecimento, ou talvez mesmo a maior em períodos de acalmia financeira) - há uma reduzida preocupação em veicular a bondade virtuosa (potencial, entenda-se) de importantíssimas dimensões da vida social, estas da monogamia heterossexual de teor conjugal.
Enfim, nesta disciplina curricular não será o Demo a funcionar - repito-me - mas é com toda a certeza um Educador algo distraído. Ou mesmo ressabiado. Pois nisto tão enviesado aparece. Sublinho que como tal aparece nos itens do programa escolar pois, dada a algo convulsa heterogeneidade desta disciplina, presumo que as práticas poderão ser bem mais matizadas. Aliás, isso o demonstra o silêncio social - excepto o irredentista caso da família Mesquita Guimarães - diante da "Educação para a Cidadania" que grassou neste país tão mariano.
Em última análise - e nisso discordo do que escreveu António Barreto sobre este assunto - a Escola serve mesmo para formar cidadãos. O historial da massificação (e extensão) da educação, tornada obrigatória, acompanha a sedimentação da concepção universalista da cidadania. A Escola serve para inculcar um médio denominador comum básico dessa cidadania, aquilo que a sociedade entende necessário atribuir (ensinar) a cada um dos cidadãos para que estes o sejam. Por isso se aprende numa língua peculiar - num país monolinguístico (tirando a pantomina folclórica da elevação do mirandês a língua oficial) isso parece-nos "natural", qual obrigatório, mas deveria ser evidente que não o é. Por isso se aprende um determinado corpo literário, para sedimentar esse conhecimento linguístico preferencial e uma apreensão de "identidade nacional" - obrigamos os petizes a ler Eça mas não Flaubert ou Tolstoi, com evidentes perdas para as crianças; obrigamos os mesmos a ler Camões e escondemos-lhes Mendes Pinto, para sua desengraça e mesmo desgraça. Privilegiamos o ensino da história nacional - algo que não está inscrito na "natureza das coisas" - e mesmo o da história universal é algo umbiguista, sob o cânone da velha história universal oitocentista. Mas também, e ainda que de modo menos explícito, o ensino básico de outras ciências sociais (Geografia, Economia, etc.) surge como ancorado no nosso contexto nacional e das suas articulações internacionais, em termos de processos históricos [para exemplo dedicado aos habituais comentadores resmungões: o mapa-múndi que continua a ser veiculado é o que deriva da projecção de Mercator]. Mas se esse viés mais explícito da Escola como produtora de futuros cidadãos com um particular capital cultural português (uma "identidade") é logo reconhecível, é preciso recordar que também o ensino de saberes técnicos e das ciências naturais é demarcado por essa concepção universal de cidadania, essa produção de um capital cognitivo específico aos cidadãos portugueses: as opções pela extensão e intensidade do ensino dessas ciências é diversa do que acontece em outros países (por exemplo, parte substancial dos futuros cidadãos só estuda Matemática até aos 14/15 anos). E as opções desvalorizadoras do ensino técnico-profissional foram marcadas (e continuam a sê-lo, de modo implícito) por uma concepção igualitária do exercício de cidadania, sob a qual a formação escolar "profissionalizante" é considerada desvalorizadora, assim apoucadora da cidadania dos discentes.
Ou seja, a Escola serve mesmo para formar cidadãos, portugueses. Nisso procura inculcar valores e uma identidade comum, através do disseminar de um capital cognitivo comum. Negá-lo é uma distracção. Mais ainda, Portugal tem um Estado laico e não um Estado secular. Aqui se respeita a pluralidade cultural nos seus diversos itens. Mas não se consagram diferentes entidades constituintes da sociedade (religiosas, ideológicas, regionais, linguísticas, étnicas, "raciais", clubísticas, grupos secretos, etc.) - apesar da insana deriva identitarista do neo-marxismo actual e das iniciais tentativas do presidente Sousa de elevar as confissões religiosas a agentes políticos, entretanto felizmente esquecidas. Assim sendo defender os particularismos, neste caso educativos, é afrontar o nosso modelo sociopolítico. Não é preciso ser maximalista, poder-se-á aceitar algum pluralismo mas desde que não afronte o corpo comum dos conhecimentos a serem transmitidos. Estes poderão ser complementados mas não recusados em nome de uma qualquer crença identitarista ou localista (os professores do Porto não ensinarem que Lisboa é a capital por serem adversários do centralismo, para exemplo nada espúrio).
O que é fundamental é discutir, aprimorar, esse corpo comum de conhecimentos transmitido, não é pluralizá-lo em feixes sociologicamente discriminados, em nome de sacrossantas "identidades" ou de mí(s)ticos mercados intelectuais/escolares. O que devemos exigir num regime democrático é não só a disseminação generalizada de uma competência de saberes produtivos mas também de valores de uma cidadania democrática, nisso de uma identidade patriótica mas não nacionalista (para usar a distinção de Orwell). Nesse âmbito reclama-se uma transmissão matizada de valores, depurada daqueles mais ideologicamente marcados, enviesados em favor de sectores particulares da nossa sociedade. Esta é um distinção muito fluida, sempre debatível, mas que deve salvaguardar a distinção entre público e privado (a tal democracia), entre os conteúdos gerais promovidos pela Escola (pública ou privada sob alvará estatal) e a autonomia familiar.
É-me muito difícil traçar a linha fronteiriça - até porque tanto os programas do ensino devem ser sempre debatidos como os conteúdos dessa autonomia familiar não são intocáveis (um tabefe num puto porque se balda às aulas é socialmente aceitável, espancá-lo com a fivela do cinto porque reprovou convoca a sanção social e penal. E concordamos com isso: há algumas décadas não era assim, violou-se/transformou-se o princípio da autonomia que consagrava a autoridade paternal). Mas para tudo encontro uma ilustração, que é mais do que esclarecedora, e estabelece bem os limites da intervenção estatal - e que me leva a pensar que a família Mesquita Guimarães não está desprovida da sua razão. E que como tal deve ser respeitada, nesta necessária ambivalência que acompanha a reflexão sobre assuntos verdadeiramente relevantes.
Para a tal ilustração convoco o filme O Clube do Imperador (The Emperor's Club), uma espécie de sequela do célebre "O Clube dos Poetas-Mortos", pois seguindo o rumo do professor liceal carismático. William Hundert (Kevin Kline) é um professor que se depara com um aluno de extremo potencial mas com um comprometimento problemático com os estudos. Como tal visita o pai - um poderoso político - para lhe colocar a situação. Eis um excerto da conversa, iluminador:
(Emperor's Club, "Don't mold my son", excerto entre Hunder (Kevin Kline) e Bell (Harry Yulin)
William Hundert : Sir, it's my job to mold your son's character, and I think if...
Senator Bell: Mold him? Jesus God in Heaven, son. You're not gonna mold my boy. Your job is to teach my son. You teach him his times tables. Teach him why the world is round. Teach him who killed who and when and where. That is your job. You, sir, will not mold my son. I will mold him.
Neste breve trecho está tudo condensado. É certo que na realidade as crianças (tal como os adultos) são moldados na miríade das suas interacções: entre amigos, na Internet, na televisão, na vizinhança, nas canções que ouvem e nos ídolos que eregem (o meu Lou Reed desde a adolescência, o meu Clint Eastwood desde jovem adulto). E até na Escola ("panta rei" aos meus 15 anos). Mas de facto o seu molde fundamental é uma instituição que para isso tem o direito (um "direito natural", se se quiser invocar tal conceito): a Família, as famílias. Se estas exercem tais funções de modo competente ou incompetente, se são bom molde ou não, isso é outra discussão. Mas o papel da Escola, como diz o senador Bell, é o de ensinar "que a Terra é esférica" [e não plana, como dizem os "terraplanistas" de facto defendidos pelos que admitem o pluralismo curricular], "quem matou quem e onde" (e não narrativas militantes, quais velhas "fake news" sistematizadas dos compêndios ideológicos), os tais valores públicos que sustentam o nosso ordenamento social e político (os "gregos e romanos" a que o professor Hundert alude).
E parece-me que o problema do nosso Legislador e do nosso Educador, carregados de um abusivo "optimismo pedagógico" e de uma desmesurada cultura estatista benfazeja, é o de não terem visto este filme. Mediano. E assim incompreenderem a sua função, extravasando-a. Em modo antidemocrático. E nem sequer compreendem isso. Assim sendo, por distraída e entusiasmada incúria intelectual, medíocres cidadãos.