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Delito de Opinião

O que valeu a pena ver em 2014 - 3/3

José Navarro de Andrade, 31.12.14

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Ida antes de ouvir John Coltrane

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 Ida ouvindo John Coltrane

 

Polónia, anos 60, catolicismo (a protagonista é freira), culpa (a tia da protagonista, ex-juíza, condenou inimigos do estado à morte nas purgas vermelhas de 50) e John Coltrane. Se não fosse o último item tudo em “Ida” seria demasiado óbvio à partida, mesmo que à chegada acabássemos por sentir a espada fria do desalento – haverá verões na Polónia? – que corta todo o filme. Planos longos e muito quedos (e tensos), enquadramentos esvaziados de quinquilharia cenográfica e ritmo pouco atribulado, não são meras marcas de estilo – do estilo que se espera das cinematografias outrora “do leste”, hoje da “europa central” – mas uma necessidade dramática. Não havia outra maneira de mostrar nem de transmitir isto. “Isto”, posto em filme contemporâneo, é um formidável ajuste de contas da Polónia com o seu presente, fingindo que se mostra o passado. O tema “Naima” de John Coltrane (“Giant steps”- 1959), posto aqui e posto assim, é o rasgão de luz efémera que por momentos cintila em “Ida”, capaz de alinhar todas as peças no seu lugar e virar o tabuleiro ao contrário – um golpe de génio, tão comedido como a narrativa do filme. Noutras cinematografias prefere-se a auto-punição ou o género sempre-em-festa, ambas formas de não olhar, nem sequer para o umbigo. Chama-se Pawel Pawlikoswski o autor desta pérola.

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Estreou-se neste ano de 2014 mais um troço da extensíssima perquirição de Frederick Wiseman (84 anos de idade) às instituições públicas contemporâneas, que já tem 43 peças. Por junto Wiseman oferece-nos a mais formidável memória futura da nossa civilização – se um dia ela desaparecesse, bastariam os seus filmes para entendê-la. Desta vez escalpela a National Gallery de Londres de maneira mais breve que o habitual, só durante 180 minutos. Se o tivesse visto seria decerto um dos filmes do ano.