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Delito de Opinião

O "Público" e Boaventura Sousa Santos

jpt, 13.03.22

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Boaventura Sousa Santos publicou no "Público" (pelo menos) dois textos de opinião dedicados à invasão russa da Ucrânia. Nada do que neles escreveu diverge das concepções que nas últimas décadas vem pronunciando sobre as diversas matérias do mundo, e que tão queridas e aclamadas vêm sendo em nichos da intelectualidade portuguesa: uma filosofia da história de teor conspiratório, crente na "mão invisível" que tudo causa e comanda, a omnipotência dos omnimalevolentes Estados Unidos da América; um método particular, o manuseio por cardápio das realidades históricas (ditas como apenas "construídas" pelos observadores) para sustentar um discurso apresentado como progressista e que se embrulha como democrático - ainda que refute a "democracia formal"...

Nestes dois últimos textos essas condições estruturais lá estão patentes, mais uma vez. A sua paupérrima deriva pela monocausalidade, intelectualmente indigna - convém notar que até chega a dizer que a dissolução guerreira da Jugoslávia em 1991 se deveu a que os EUA não queriam que subsistisse um país europeu do Movimento dos Não-Alinhados (em 1991!!!), um perfeito dislate. Disparatada mundividência que o leva agora à simples responsabilização dos Estados Unidos da América, da NATO e das democracias liberais europeias pelo advento da guerra russo-ucraniana. E uma verdadeira hipocrisia, ao anunciar que desde há muito existia a necessidade de extinguir a NATO para fazer uma força militar europeia conjunta - sendo óbvio, sem ser necessária grande especulação, que se isso tivesse acontecido nas últimas três décadas, decerto que sob influência maior do par franco-alemão e implicando grande aumento de despesas na Defesa, Boaventura Sousa Santos e todos os seguidores viriam constantemente criticar esse esforço armamentista capitalista, imperialista e anti-democrático.

Enfim, e por mais que se possa discordar destas opiniões, nada do que ali surge é surpreendente para quem costume ler o autor. Aparentemente é mais do mesmo... Ainda assim esta abordagem, verdadeiramente descabida, à invasão russa abanou o "Público". Daí o violentíssimo editorial de anteontem, escrito pelo seu director Manuel Carvalho, ripostando explicitamente ao mestre conimbricense, coisa rara pois afrontando quem há tanto tempo segue do jornal colunista. E o título diz quase tudo, naquilo da "miséria moral"..., que abarca, é certo, outros componentes do eixo russófilo mas que, é evidente, se centra naquele autor.

Será de esperar que esta auto-crítica do jornal se possa alargar, afrontando outras derivas internas de extremo racialismo, também elas surgidas em roupagens "pós-modernas" e, ainda, "pós-coloniais". Que em nada perdem face ao seu velho mestre no que respeita à superficialidade demagógica e ao constante demonizar das sociedades democráticas. A ver vamos...

Para quem não conseguir ler a imagem aqui deixo a transcrição da inusitada crítica ao colunista do jornal: 

“A miséria moral da esquerda iliberal”

Manuel Carvalho 11.3.22, Público


“A guerra raramente promove consensos e a que está a devastar as cidades da Ucrânia não foge à regra. Não faltam por aí crédulos como Chamberlain, simpatizantes dos ditadores militaristas como Lord Halifax ou até meros vendedores da alma própria e alheia como Pétain. Entre nós, não faltam também os que se servem dessa extraordinária superioridade moral das democracias liberais, a de acolher e estimular pontos de vista divergentes, para caírem no relativismo moral e manipularem o indispensável julgamento sobre quem é vítima e inocente e quem é agressor e culpado.

O festim do relativismo que tende a dizer que Putin é culpado mas… perturbou o Bloco de Esquerda, agravou a obsolescência doutrinária do PCP e chegou a um patamar digno de monumento com a recomendação de Boaventura Sousa Santos (B.S.S.) para que a Europa faça a sua autocrítica perante o que acontece em Mariupol, em Kharkiv ou em Kiev.

Não surpreende que o que resta da esquerda maniqueísta continue a olhar o mundo na perspectiva saudosista da Guerra Fria. A rigidez conceptual do seu mundo luta ainda por essa memória do confronto entre dois blocos. Não havendo hoje um lado bom (a URSS e o Pacto de Varsóvia), continua a haver pelo menos um lado mau (a NATO e os Estados Unidos). Se antes era glorioso estar do lado soviético ou, depois da vergonha da invasão da Checoslováquia, ser “melhor vermelho do que morto”, hoje os resquícios desse tempo perduram no ódio aos Estados Unidos e no apoio a tudo e todos que os possam desafiar ou comprometer.

Em vez de porem as democracias contra as autocracias em confronto, preferem falar nos EUA como o eterno “império do mal”, ignorando que Trump foi amigo e protegido de Vladimir Putin, esquecendo que a Rússia desenvolve há anos planos para apoiar Salvini ou Le Pen. Pouco importa que Putin e Moscovo estejam hoje no lado oposto do comunismo, que estejam até de braço dado com os populismos de pendor fascizante. Importa sim é explorar todas as formas de alimentar o ódio visceral que os EUA lhes merecem.

E quando se diz ódio visceral tem-se em apreço o peso das palavras. Porque não é o conhecimento da história política ou das ideias que justifica a forma como essa esquerda fossilizada relativiza a violência da Rússia sobre a Ucrânia. É, pelo contrário, a mentira e a manipulação. Quando Boaventura Sousa Santos diz que a Europa deve envergonhar-se por não ter sabido evitar a guerra, está a usar a narrativa contrafactual para salvar Putin e culpar a Europa pelo seu imperialismo militarista. Da mesma forma, quando culpa os Estados Unidos pelo golpe no Brasil em 2016 que elegeu Bolsonaro, não baseia em coisa alguma esta teoria da conspiração nem diz que o Presidente mais cavernícola da democracia brasileira simpatiza com Trump e Putin e odeia Joe Biden e a democracia americana.

Esta manipulação cheia de ranço soviético e antiamericanismo primário não se fica pela acusação à Europa, afinal a culpada por não ter salvado o mundo das garras de um ditador, ou mera extensão dos desígnios da dominação mundial da América.

Mais grave ainda é considerar que os Tratados de Minsk foram violados pela Ucrânia, quando se sabe que as repúblicas populares de Donetsk e Lugansk trataram de marcar eleições logo em Novembro de 2014, em clara violação dos tratados, com o apoio da Rússia e o protesto dos negociadores da OSCE. Uma mentira tão inaceitável como a de dizer, como também o PCP defende, que em 2014 houve um “golpe” contra um Presidente eleito democraticamente.

Um intelectual de esquerda com os pergaminhos e o prestígio de B.S.S. certamente interpretaria a intensa e corajosa luta popular na Praça Maidan, que durou mais de 100 dias e causou mais de 100 mortos, como uma façanha digna da Primavera dos Povos ou da Comuna de Paris se na origem da rebelião não estivesse o cumprimento de acordos com a União Europeia. A traição à vontade popular, ou expressões ainda mais eloquentes consagradas na terminologia revolucionária, seria sem dúvida um bom argumento para explicar e justificar a queda de Viktor Ianukovich.

Mas isso só aconteceria se Ianukovich não tivesse esmagado o desejo dos ucranianos em aproximar-se da democracia europeia e, pelo contrário, tivesse cedido às exigências da Rússia. O Euromaidan seria um acontecimento com enorme potencial para ilustrar o património das glórias populares dessa esquerda, só que, infelizmente para os seus arautos, fez-se em nome das democracias burguesas da Europa.

Na mesma linha delirante está a tese de que há linhas de fundo da política externa de Washington que “provocaram a Rússia” para se “expandir”, de modo a que quando se expandisse pudesse ser “criticada por fazê-lo”. Lê-se e custa a acreditar que um relatório da Rand Corporation citado por B.S.S. seja suficiente para corroborar tão delirante visão. Quer isso dizer que os EUA e a UE estimularam o ataque à Ucrânia apenas para poderem hoje dizer que a Rússia é um perigo para a segurança mundial e a atacarem com sanções?

Acreditar nisto não difere muito da crença de que os comunistas comiam criancinhas. Afinal, Putin ataca a Ucrânia não por recusar o seu direito a ser uma entidade histórica, ou por a querer desmilitarizar ou “desnazificar”. Não: responde apenas a uma provocação.

Numa democracia (e num jornal europeu, democrático e pluralista como o PÚBLICO) cabem todos estes devaneios, mesmo que ancorados em visões distorcidas ou manipuladas da História - ao contrário do que acontece na ditadura de Putin que B.S.S. tão ardilosamente protege, a divergência é um tempero indispensável das sociedades livres.

Mas há nesta forma de explorar o relativismo uma hipocrisia que começa a ser intolerável. Que B.S.S., ou o PCP, ou quem quer que seja, defendam Putin, a Rússia e a agressão à Ucrânia de forma aberta, corajosa e frontal, estão no seu direito. Mas que digam então de forma livre e consciente que a Rússia e a autocracia de Putin (ou a China) lhes fazem falta, para que a democracia liberal do Ocidente, que atrai os jovens ucranianos ou bielorrussos, tenha opositor à altura.

Não podem nem devem tergiversar com meias verdades ou mentiras inteiras apenas para expor a sua crença num mundo bipolar onde os maus estão na Europa e na América. Se o ataque à Ucrânia serviu para alguma coisa, foi para expor a inconsistência dos seus mitos.

Conservemos, pois, as relíquias doutrinárias do mundo bipolar e guardemo-las longe da guerra na Ucrânia. Como memória, dão sentido ao nosso tempo e exacerbam o valor da democracia dita burguesa; como exercício para interpretar o presente da Rússia, da Ucrânia e do Ocidente, só garantem as ideias moles do relativismo e uma evidente falta de pudor perante o sofrimento do povo ucraniano.

 

 

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