O Postal do Anacleto
Todos os Natais, impreterivelmente e durante vários anos, não falhava a chegada do postal do Anacleto.
A mensagem era, em tudo, semelhante à do ano anterior e chegava sempre no momento de colocar a última figura no presépio. Desejava umas boas festas à professora Marta e a toda a família, e agradecia, em tom cerimonioso e sempre com algum erro ortográfico, a enorme influência da minha mãe na sua vida. Um dia atrevi-me a perguntar quem era o Anacleto, nome alegórico, a fazer lembrar uma personagem de circo.
O Anacleto, juntamente com o irmão, fazia parte de um grupo de miúdos do Casal Ventoso que, algures nos anos 70, frequentavam actividades de tempos livres onde a minha mãe era animadora. Era um grupo difícil. Todos analfabetos, das letras e do mundo, entre os seis e os doze anos, com rostos endurecidos pela vida e sem grande perspectiva de futuro capaz.
As actividades eram simples, adaptadas à audiência, e tinham como objectivo ajudar aquelas crianças a desenvolver capacidades tão primárias como a atenção, a memória ou a coordenação motora.
Um dia, entraram de rompante pela porta num fulgor de entusiasmo.Tinham visto o Auto da Barca do Inferno na televisão e queriam fazer a peça. Mediante tal euforia, a minha mãe não lhes soube dizer que não. Simplificou o texto, improvisou um cenário à altura, distribuiu papéis e ensaiou milhentas vezes as entradas e saídas de cena, as falas, os gestos e as posições em palco.
O irmão do Anacleto tinha um muito provável atraso mental. Foram-lhe dados alguns papéis à experiência e, incapaz de sequer acertar o passo com os cavaleiros, acabou por fazer de moço que levava a cadeira onde o fidalgo se sentava.
Lá pelo meio dos ensaios chegou a altura de tratar dos trajes. Arranjou-se maneira de irem em excursão ao Guarda-Roupa Paiva, no Parque Mayer. Quando transpuseram a porta daquele armazém repleto de charriots, cabides e prateleiras foi como se tivessem entrada na gruta de Ali-Babá. Nunca tinham visto tal coisa e esbugalhavam os olhos no deslumbramento de experimentar chapéus, asas de anjo, mantos, coroas, espadas e floretes.
Chegou a noite de actuação. A minha mãe mandou-os vestir e deu instruções para que, no fim da peça, colocassem a roupa num cesto para ser depois devolvida à procedência.
E assim avançaram pelo palco, sem temor, anjos, diabos, cavaleiros, judeus, fidalgos e sapateiros. Com tal brio e compenetração que, ao cair do pano, a casa veio abaixo em aplausos estrondosos.
A minha mãe ficou sentada na plateia à espera da rapaziada. Esperou, esperou, e ninguém aparecia. Resolveu então ir investigar o que se passava. Quando chegou ao camarim improvisado deu com o elenco ainda vestido. Pediram-lhe: “Senhora, deixe-nos fazer outra vez”. E assim se sentou a minha mãe na plateia vazia a assistir, de fio a pavio, à repetição da encenação enquanto lágrimas grossas e indisfarçáveis lhe corriam pela cara abaixo.
O Anacleto foi mantendo contacto. Na altura tinha 11 anos e andava ainda na primeira classe. Soube-se que nos quatro anos seguintes conseguiu acabar a primária e que arranjou emprego num hotel no Algarve.
O irmão, um dia, encontrou a minha mãe na rua e fez-lhe uma grande festa. Quando indagado sobre o que andava a fazer, respondeu, de peito inchado, com orgulho e convicção: “Estou a viver em Trás-os-Montes. Tenho um grupo de teatro e estou a ensinar aos outros aquilo que a senhora me ensinou a mim”.
A minha mãe não perguntou mais nada. Porque embora duvidando do ritmo cénico dos cavaleiros deste grupo de teatro de Trás-os-Montes, não teve qualquer dúvida de que, naquele momento, a badalada do seu coração batia a um ritmo muito mais descompassado.