O Podcast Mudo (4): o Bisneto de Marx
Foi Flávio (belo nome) Arriano que nos legou os dizeres do seu mestre, o estóico Epicteto - pois este nada terá sido dado aos afazeres da escrita (académica, ainda não se dizia naquela época). Entre esses a crua constatação de que "Não são as próprias coisas, mas as opiniões acerca das coisas o que atormenta os homens", tão impressiva que, 17 séculos depois, Sterne a elevou a epígrafe quando decidiu inventar o romance, ou quase... Cada um interpretará como assim o quiser mas fico-me eu a pensar que o antepassado militava na inquietude intelectual, a da crença de que tudo isto que nos ocorre na vida seria - se bem pensado - algo harmónico, por isso previsível pois compreensível e assim até justo. Disso retirando uma enérgica, como se heróica, placidez - o tal estoicismo - face ao fado, próprio e alheio, fazendo por controlar o controlável e resignada diante do imenso incontrolável. E que nessa inteligência, apesar de tamanhas agruras e amarguras que sempre brotam, o insuportável não é o destino mas sim o desatino, não a dor inadiável e inultrapassável mas sim as meras atoardas que os vizinhos vão perorando.
Lembro-me agora disso, um ano já que vai passando de guerra na Ucrânia. Do sobressalto (também cívico) que se sofreu. E muito das tais atoardas que atormentam, travestidas de pensamento "livre" e "alternativo", tão bastantes então foram elas. Um pouco das austrais - que me são (e sempre serão, sei-o) também vizinhas: na Ilha de Moçambique o escritor Agualusa logo se aprestou a namorar o belo mercado da esquerda brasileira regurgitando a propaganda russa na imprensa daquele país, ao nela clamar o nazismo dos ucranianos. Entretanto, um pouco mais a Sul inúmeros intelectuais erguiam-se contra os "ocidentais" (entenda-se, brancos), pois viciosos no nosso racismo por nos preocuparmos com uma guerra na Europa enquanto nos calamos com as desgraças africanas - curiosas argumentações, irritei-me eu, vindas de opinadores que desde há décadas praticam, por exemplo, um sepulcral silêncio sobre os milhões de sepulcros congoleses, ali quase vizinhos, e que mesmo haviam sofrido tão recentes anos de pasmo mudo face à "insurgência" no Norte do próprio país.
Mas ainda mais me atormentei com os dislates por cá, inúmeros. Entre esses tantos recordo, quais marcos topográficos, o da "estrela mediática" e deputada bloquista Mortágua defendendo - ela sim - a argumentação nazi na sua legitimação do "espaço vital" russo, o do coordenador da biblioteca Ephemera e renomado militante do PSD Pacheco Pereira, arvorado em relativista no amornar do imperialismo russo e apoucando a nossa adesão simpática ao povo agredido, pois também ele entoando o trinado do nosso racismo omnipresente. E os quotidianos dos nossos generais, feitos comentadores televisivos, afinal tão avessos à NATO que furiosos russófilos. Entretanto o nosso PCP desdobrou-se em dichotes, culminados com a publicitação da "notável solução que a União Soviética encontrou para a questão das nacionalidades e o respeito pelos povos e suas culturas", inacreditável e inaceitável declaração em pleno XXI mas afinal recebida não com a ira devida mas já como se apenas despiciendo murmúrio moribundo. Mas talvez o mais sonante foi o da junção de 20 personalidades que, ancoradas nos seus prestígios biográficos e intelectuais - e após terem exarado incessantes diagnósticos culpabilizadores dos EUA e das restantes exploratórias democracias ocidentais -, vieram anunciar-se como perseguidos e até criminalizáveis devido ao seu pensamento livre, muito mais capaz pois complexificador e avesso às campanhas propagandísticas do "pensamento oficial", único e totalitário, que disseram vigente. A altivez intelectual, tricotada ao anti-americanismo mais básico - próprio dos vários tipos de crença comunista congregados (da mais ortodoxa até à do "brigadismo" do terrorismo urbano, passando pelo dito "pós-marxismo" "abissal") - nessa última "carta aberta" foi então um "must" das tais "opiniões" que "atormentam os homens".
Logo então a reclamação da tal "complexidade" do pensamento próprio, enfrentando as "campanhas propagandísticas" do "pensamento único" capitalista, feita por gente que presume serem as suas biografias comprovativos da sua justeza intelectual, lembrou-me este livrinho, que herdei das estantes paternas: "No Coração da Europa... "Primavera" ou "Outono" de Praga?", editado pela Agência de Imprensa Órbis em 1979, e que terá a curiosidade de ter sido traduzido por José Saramago - não posso saber se por iniciativa própria se por encomenda editorial e/ou partidária... O seu autor é Robert-Jean Longuet (1901-1987), um bisneto de Marx, jurista e jornalista. O qual teve um rumo ideológico algo heterodoxo, de tendência socialista, passando por patriotismo gaulista durante a II Guerra Mundial e jornalismo em periódicos comunistas, para além de uma rica biografia, da qual destaco o seu pioneirismo anticolonialista, com denúncias ao racismo subjacente nas colónias francesas, tendo sido fundador da relevante revista Maghreb e autor de um punhado de livros. Deixo estes detalhes para realçar não aparentar ele ter sido um "ortodoxo" comunista nem um "funcionário partidário" ou mero fiel "intelectual orgânico" ao longo de toda a sua vida. E de ser credor de respeito intelectual - para os mais distraídos: nos anos 1920s não abundavam europeus activos anticolonialistas...!
Dito isto, este seu "No Coração da Europa..." é uma obra exemplar, de tão demonstrativa é de um olhar "militante" e dito "analítico". Resulta de uma longa reportagem que Longuet fez na Checoslováquia em 1972, quatro anos após a invasão soviética que tanto brado deu. E que o autor apenas decidiu publicar em 1979 - recordo que já depois dos Acordos de Helsínquia (1975) e, mais significativamente ainda, já acontecida a Carta 77, recomeço simbólico do movimento democratizador checoslovaco, pontificado por Vaclav Havel. Longuet fizera antes a tal reportagem, com uma profusão de entrevistas a membros do aparelho de Estado, do partido comunista e "operários e camponeses". Disso resultou este livro, totalmente laudatório do regime comunista de Praga, anunciando os seus sucessos, sublinhando as suas virtudes, antevendo a sua ainda maior ascensão futura. E a tudo associando um veemente vitupério ao boicote e intrusão dos países ocidentais, comandados pelos americanos, que teriam causado os problemas de 1968, o tal para ele "Outono de Praga". E Longuet justificou a publicação - 7 anos após a conclusão do texto, 11 anos após a invasão de Praga - devido à necessidade de dar a conhecer a sua "análise serena, objectiva e mais profunda das causas" para "restabelecer os factos e dar informações objectivas" sobre os "progressos constantes desde 1970, na Checoslováquia, em todos os domínios" (11), tudo isso permitido pelo seu pensamento , dito livre, complexificador, ultrapassando a verdadeira censura hostil à Checoslováquia, dominante no "mundo imperialista", tarefa essa tão elogiada no prefácio de Jeannette Thorez-Vermeersch, viúva do antigo secretário-geral do PC francês, esta tão ciente seguia do desagregrado estado desse mundo e do florir socialista, tão bem capturado pela análise do autor.
(Re)Leio este "pensamento livre", "complexificador", indagador das verdadeiras "causas dos fenómenos", avesso ao "discurso único", "dominante" no "mundo capitalista" (esse que agora se diz "ocidental"), invectivando as democracias por todos os males e mentiras e prenunciando um "óbvio" rumo histórico. E como sei da história desde 1979 não deixo de sorrir diante de tamanha basófia intelectual, tanta que já nem atormenta. Tal e qual, sem tirar nem pôr, a destes tipos de agora. Enfim, que belo legado me foi este livrinho, a desartormentar-me diante da vacuidade alheia, a destes Longuets lusos. E esse é bom passo, ainda que paradoxal, no rumo do estoicismo.