O pior de dois mundos
José Sócrates foi o pior primeiro-ministro da terceira república e um dos três políticos portugueses mais importantes das últimas três décadas e meia (estou a recuar apenas até à morte de Sá Carneiro mas provavelmente poderia ir até 1974). Conseguiu-o unindo as piores características dos outros dois: Cavaco Silva e Mário Soares.
Como tem sido abundantemente referido, Cavaco lançou o modelo económico baseado em investimento público em infra-estruturas, desinteresse pelo sector de bens transaccionáveis, sistema de ensino mais baseado na massificação do acesso do que na qualidade, sector público cada vez maior e mais difícil de controlar. Mas Cavaco ainda pode apresentar uma desculpa: em 1985, quando chegou ao poder, Portugal era muito diferente. Justificava-se algum investimento em obras públicas, para mais quando estavam disponíveis fundos comunitários para o efeito (poucos se lembrarão mas não existia sequer uma auto-estrada completa entre Lisboa e Porto). Justificava-se claramente a reforma do sistema fiscal (uma alteração que queda esquecida, nesta época em que não convém dizer bem de Cavaco). Justificava-se a tentativa de abrir o sistema de ensino ao maior número de alunos possível, após décadas de salazarismo, ainda que fazê-lo demasiado depressa acarretasse riscos – comprovados – de quebra na qualidade. Apesar de ter sido feita por motivos eleitoralistas, justificava-se em parte a reforma do sistema retributivo da Função Pública, muito mal paga durante o salazarismo (e, sim, um país evoluído necessita de uma boa Função Pública, o que implica salários convenientes). O grande problema dos governos de Cavaco (em especial dos maioritários, em especial do segundo) foi o descontrolo em que se entrou – e (um ponto indesculpável) o desprezo a que foi votado o sector de bens transaccionáveis, com o desmantelamento forçado (começo a soar como o PC mas, de longe a longe, serve como purgante) da capacidade instalada em vários sectores, entre os quais a agricultura (hoje em crescimento). Mas, se Cavaco lançou o modelo, ninguém depois dele foi capaz de o ir corrigindo à medida das necessidades. O sector público, pejado de corporações, tornou-se demasiado forte; os empresários do regime, muitos dos quais ligados à construção civil e à banca, manobraram para que os dinheiros públicos continuassem a fluir na sua direcção; a baixa de juros conseguida com a introdução do euro iludiu toda a gente, gerando níveis insustentáveis de endividamento, potenciados durante longo tempo pelo Estado através de bonificações ao crédito e benesses em sede de impostos sobre os rendimentos. Quando Durão Barroso afirmou que o país estava «de tanga» e urgia tomar medidas desagradáveis, todos lhe caíram em cima – da comunicação social a Jorge Sampaio, passando por um Partido Socialista que saíra do poder com referências ao «pântano» mas as esqueceu de imediato para tombar no populismo e na demagogia habituais. E depois veio Sócrates. E foi então que o modelo a que Cavaco entretanto descobrira as falhas atingiu o esplendor máximo, em particular após a crise financeira internacional abrir portas à versão de que era urgente estimular a economia, devendo o controlo do défice ser preocupação para mais tarde (foi-o e todos sabemos com que consequências).
A influência de Mário Soares no período Sócrates é mais subtil mas ainda mais perniciosa. Soares, que sempre se moveu numa esfera de inimputabilidade, representa uma maneira de ser (talvez mais do que «agir») bastante disseminada na sociedade portuguesa, assente em grupos de amizade e troca de favores. Mais do que o socialismo, a ideologia de Mário Soares é o bem-estar pessoal e dos seus próximos. Daí não ter tido quaisquer problemas em, enquanto primeiro-ministro, implementar medidas do FMI similares às que nos últimos anos criticou. Daí nunca ter mostrado reticências em dar preferência a pessoas e organizações fora do quadrante ideológico a que presumivelmente pertence – pense-se em Savimbi e na UNITA. Soares move-se num mundo onde os que estão do lado dele são intrinsecamente bons e não merecem sujeitar-se às minudências das regras – ou mesmo (veja-se Craxi ou as declarações actuais sobre a detenção de Sócrates) das leis. Move-se também num mundo cosmopolita, de ideias e frases (feitas) grandiosas. É um bon vivant. Embora consiga mostrar-se à vontade entre o «povo» (num registo apenas ocasionalmente manchado por uma certa condescendência), aprecia dar-se com pessoas importantes e faz questão de que se saiba que o faz (mon ami Mitterrand). Muitos já o afirmaram: mais do que as diferenças políticas (durante muito tempo, tão ligeiras quanto as diferenças entre o estilo de governação tradicional dos governos do PS e do PSD), foi esta faceta que o afastou de Cavaco. Para Soares, Cavaco era – e é – plebeu, inculto, grosseiro (relembre-se a famosa fatia de bolo-rei). Nada como Soares, como os seus amigos socialistas ou mesmo como os líderes anteriores do PSD. E, no entanto, carregado com todos estes defeitos, vindo de fora do sistema (Cavaco afirma frequentemente não ser um político, o que é quase verdade quando o seu percurso é comparado ao de Soares), Cavaco retirou Soares e os seus do poder, conseguindo a então quase mítica maioria absoluta. Imperdoável. Anos mais tarde, para tentar impedir Cavaco de chegar a Belém, Soares incompatibilizar-se-ia mesmo com um velho amigo, Manuel Alegre, sofrendo a sua mais estrondosa derrota política (como deve ter doído a um homem que cruzou armas com – e venceu, apesar de pelo menos num dos casos tal ter sucedido por falta de comparência – políticos da estirpe de Álvaro Cunhal e Sá Carneiro). Hoje, quando a idade já não lhe permite alinhavar as ideias de forma a criar uma versão inteiramente coerente e pessoalmente vantajosa de acontecimentos que lhe desagradam (algo em que Sócrates é mestre), alguns acusam Soares de senilidade. Não nos conceitos por trás do discurso. Os conceitos são os de sempre: ele e aqueles que lhe agradam são impolutos e, acima de tudo, intocáveis.
José Sócrates constitui a pior amálgama possível das características dos dois – e, por conseguinte, o pináculo dos piores defeitos nacionais. De Cavaco, herdou a tendência autoritária (que, no fundo, embora em registo soft, Soares também possui), levando-a muito para além do que deveria ser politicamente (e talvez criminalmente) aceitável. Em ambos, vislumbra-se a sombra de um Salazar que ainda há não muitos anos foi eleito o maior português do século XX. Terem sido os únicos a conseguir maiorias absolutas para os seus partidos é sinal revelador da necessidade de pastoreio que os portugueses continuam a sentir. Sócrates herdou também de Cavaco a tendência para meter o Estado em todos os recantos da actividade económica e não vale a pena pretender que, num caso como no outro, isso não originou corrupção. Mas Cavaco tinha – ou parecia ter – mais um ponto em comum com Salazar: a frugalidade. Esta é uma característica que Sócrates, crescido no país novo-rico que as políticas de Cavaco originaram, claramente dispensa. Pelo contrário: como Soares, Sócrates quer viver da forma a que julga ter direito. Quer dar-se com pessoas importantes (à falta de Mitterrand, arranjam-se Chávez e Kadhafi), vestir e comer bem, ser olhado com admiração (uma diferença substancial em relação a Soares – e Cavaco: confunde admiração com temor ou, pior, até gosta de ser temido). Quer decidir, conceder favores, controlar tudo. São estes factores, e não convicções ideológicas, que o levam a aumentar o papel do Estado na Economia (um Estado grande faz com que Sócrates seja mais necessário, mais bajulado – em suma, mais poderoso) e também às manobras para controlar a comunicação social. Está no centro de um grupo de «amigos» (talvez sem aspas, não sei) que surgem em inúmeros negócios com o Estado ou controlam neste posições-chave. Atira meia dúzia de ossos à esquerda (as «causas fracturantes») e mantém um discurso de defesa do Estado Social enquanto gere o interesse público com os amigos e em função deles. (Cavaco também teve um círculo de amigos de carácter duvidoso mas nunca pareceu privilegiá-los, pelo menos durante o tempo em que exerceu funções públicas – a dada altura, até parecia farto deles.) Apanhado na teia de vários escândalos, escapa às questões da Justiça, onde alguns dos referidos amigos ocupam posição de poder, e responde às da comunicação social com a assinalável capacidade para, independentemente do teor das perguntas, repetir ad nauseum e em tom ultrajado meia dúzia de frases feitas. Estávamos nos tempos em que a comunicação social já era abjecta (enfim, alguma comunicação social, que outra, por convicção, interesse ou medo, continuava a apoiá-lo) mas em que a Justiça, dispensando-o das explicações (até poderia estar inocente mas a acumulação de indícios era excessiva para tamanha indiferença), decidia bem. Hoje, que lhas pediu, a Justiça é um antro de conspiradores. Dizem-no os seus amigos. Di-lo o seu mais dilecto pai espiritual, Mário Soares. Estão todos certos. Gente superior não merece tal tratamento. Merece passar por entre as gotas da chuva - e ser aplaudida, em vez de questionada, por tão fabulosa capacidade.