O pesado manto da desmemória
“Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetal.”
Alexandre O’ Neill
Estranho país, este. Matamos os nossos heróis, os nossos ídolos, os nossos astros. Matamo-los pela inveja, pelo ressentimento, pelo cinismo, pelo ódio atávico a quem tem sucesso. Matamo-los, no fim de tudo, pelo esquecimento. É a pior forma de morte cívica – e também aquela que é praticada com maior desenvoltura nos nossos dias. Ignorar o que merece ser enaltecido e valorizado é um crime de lesa-humanidade e lesa-cultura.
Nenhum esquecimento me assombra mais do que o das nossas divas do teatro e do cinema. Mulheres que deslumbraram incontáveis espectadores nas plateias e se apagam na penumbra do ocaso, como se nunca tivessem entusiasmado multidões de adeptos na flor da idade. Mulheres como Milu, Leonor Maia, Laura Alves, Isabel de Castro, Maria Dulce, Maria Eugénia, Madalena Sotto. Sobre elas caiu o pesado manto da desmemória: é a forma habitual que temos neste país de sepultar os nossos melhores quase sempre ainda em vida.
Surge agora a notícia da morte de Maria Cabral, que numa França ou numa Itália teria sido venerada sem hesitação por ininterruptas legiões de cinéfilos. Por cá suscitou aplausos inflamados em dois filmes que a impuseram como inconfundível rosto de uma geração – a que ansiava pela liberdade num país ainda a preto e branco.
Dois filmes que se tornaram invisíveis: O Cerco (António da Cunha Telles, 1970) e O Recado (José Fonseca e Costa, 1972). Dois filmes banidos do nosso mercado, olvidados das cinematecas, omitidos pela própria RTP no seu canal memória. Como se contivessem um estigma, como se nos relatassem fragmentos proibidos de uma sociedade que ninguém quer relembrar.
Maria Cabral morreu esquecida da pátria que tantos dos seus talentos tem condenado ao desterro, no desfecho de um longo exílio voluntário em Paris. À semelhança de tantas figuras da nossa literatura, da nossa música, do nosso espectáculo, da nossa televisão.
Apagou-se longe como se nunca cá tivesse estado. Como se aquele rosto iluminado por uma prodigiosa fotogenia nunca nos tivesse visitado. Como se aqueles olhos e aqueles lábios e aquela pele jamais tivessem suscitado paixões arrebatadoras a quem os vislumbrou na tela - corpórea beleza, eterna e fugaz como todas as pulsões da vida.