O Palhaço Mau
Ali pelas redondezas da padaria do meu irmão, volta não volta, aparece o palhaço mau.
O palhaço mau é um homem na casa dos quarenta, avagabundado, que se apresenta de cabeleira colorida e gravata grandalhona, estrategicamente posicionado no meio de uma rua pedestre onde existem vários gabinetes de fisioterapia e consultórios de análises.
Sendo um palhaço madrugador, logo a partir das oito da manhã desata a atacar os pacientes em jejum que se deslocam às análises e, aproveitando-se dos seus estados de fraqueza, começa por pedir um sorriso “vá, dê lá um sorriso ao palhaço” e, depois de os desarmar, passa rapidamente para um “vá, venha de lá uma moedinha para o palhaço.
Eu e o meu irmão partilhamos um ódio figadal ao palhaço que, a quem tem a audácia de não lhe dar a moeda, desata a gritar impropérios até o desgraçado conseguir dobrar a esquina. No caso de quem vai à fisioterapia, muitas vezes de muletas, a cena torna-se um sofrimento não só para o transeunte, mas também para quem observa a lentidão do passo, directamente proporcional ao aumento do volume dos impropérios.
O meu irmão, tendo ali a padaria, é um vítima permanente do palhaço, mas para não criar má vizinhança, já concordou em oferecer-lhe pão. Volta não volta, o palhaço farta-se do pão e lá lhe crava uma moeda. Segue-se um diálogo do tipo “opá, uma moeda não pode ser. Se eu fosse dono de um banco dava-te uma moeda, mas sabes muito bem que sou padeiro. Tem lá paciência, mas só te posso dar pão”. O palhaço resignado, responde “bem, postas assim as coisas, então está bem”, e dá uma folga por mais umas semanas antes de voltar à carga: “então e um sumo, não me dás um sumo?”, o meu irmão irritado “um sumo????? tu achas que eu sou da Sumol ou quê? Toma lá uma vianinha e não me chateies mais”.
E lá volta o palhaço para a rua, assumindo o seu papel de porta voz do povo oprimido, gritando às pessoas frases emblemáticas, ao estilo Bloco de Esquerda: “pois, andas para aí de Porsche Cayenne, mas não dás uma moedinha ao palhaço”.
Ora no outro dia, tive de ir fazer análises. Em jejum e sem ter tomado o comprido da tiróide, fui levar a filharada à escola, não sem ter dado um apertão a um dos rapazes que me estava a responder torto, e sem ter tido de ouvir que se tinha perdido o livro de não sei o quê e que a culpa era minha (?). Estacionei o carro e, raismapartam que há manhãs em que uma pessoa não devia sair da cama, dou de caras com o palhaço mau.
Num acesso de egoísmo, ligado a um feroz instinto de sobrevivência, olhei para o lado e vi uma senhora a caminhar vagarosamente com uma muleta, de maneira que me imaginei a salvo.
Nada disso, levei com a cegarrega toda “um dia tão bonito e nem há um sorriso para o palhaço. Há gente assim, mal disposta logo às oito da manhã. Depois é isto, o despreeeeeeezo. Vão à missa, vão à missa, mas depois tratam as pessoas como se fossem cães” (e por aí fora até ao dobrar da esquina).
Depois, ainda não sei se aconteceu realmente ou se foi fruto de alguma alucinação provocada pelo jejum, resolvi voltar para trás, atirei-me ao gasganete do palhaço e fui-lhe aos fagotes. Assim, ele deitado no chão e eu tumba, tumba, tumba, seu palhaço comuna, estavas era a precisar de umas lambadas, seu idiota. E ele “pára, pára, pára” e eu “isso era o que tu querias, ó ovelha ranhosa dos Cardinali. A mim não me pedes mais moedinhas, ouviste? Nem a mim nem à senhora da muleta, estamos entendidos?” E ele, com a mãos perniciosas a tapar a cara, já me implorava misericórdia, jurando que nunca mais, nunca, nunca, nunca.
Foi cá um alivio.