O Palácio da Saudade
Maria Dulce Fernandes, 04.07.22
Um quadrozinho por outro com qualidade, pinturas do Sr. Monteiro do atelier copiando os Mestres, ladeava com molduras com recortes de revistas e pósteres tauromáquicos onde pontuava o nome da estrela da família o trisavô Manuel dos Touros.
Caixinhas de música, loiça chinesa , jarras, vasos, potes, um sem número de preciosidades com que o Senhor Doutor , alto dignitário de Portugal em Macau presenteava a Tia Adelaide pelos seus dotes de passajar roupa de tal modo que os infelizes buracos de cigarro se perdiam na magia da agulha e do dedal. A Tia Adelaide não teve filhos, por isso colecionava pequenas peças do Bordalo num aparador envidraçado, que mostrava a quem a visitasse, sem nunca permitir que um "seu menino" deixasse a sua mão. Podiam muito bem ser admirados de longe.
A casa da Tia Adelaide era alta e castiça, e não fora a falta dos fados e guitarradas, bem poderia ter sido a inspiração de Alberto Janes para as célebres tabuinhas. Tinha uma escada estreitinha que levava a um sótão com uma banca de carpinteiro e novelos de aparas de madeira pelo chão, lugar mágico, onde eu buscava e rebuscava, tentando encontrar os macaquinhos que o meu Avô afiançava que a sua irmã mais nova possuía no sótão, sem qualquer sombra de dúvida.
Escusado será dizer que os nunca encontrei.
As janelas, altas como portas, davam para o Jardim do Ultramar, separadas apenas por uma nesga de rua e um muro. Passava horas a atirar pão duro aos patos, a assistir a corridas e lutas pelos pedaços e a imaginar histórias mirabolantes , enquanto me deliciava com bolachas de agua e sal com colheradas generosas de doce de tomate.
O Tio Marcelino, dez anos mais velho , de 1900, como orgulhosamente apontava, partiu também 10 anos mais cedo. A Tia Adelaide manteve-se ali, rija, enquanto as pernas lhe permitiram. Depois, com grande pesar de deixar o seu cantinho e os seus quadros de natureza viva, que se animavam mal abria as portadas, foi viver com familiares até chegar a sua hora.
Lembraram-me hoje de ir espreitar a casa da Tia Adelaide.
De cara lavada e com plástica bem conseguida, brilha naquele filamento antes parelepípedos escuros, agora clara e alegre calçada, como uma relíquia que finalmente viu luz.
Não passou sem emoção é verdade, mas acredito que, gaiteira e divertida como ela só, a Tia Adelaide iria achar a casa um palácio.
Para mim foi revisitar o palácio da saudade.