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Delito de Opinião

O País do trabalho sem direitos

Pedro Correia, 17.07.19

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Férias no Algarve. São 18.30 quando chego a um dos meus restaurantes favoritos, sem marcação prévia. Em busca do peixe bem grelhado de que tanto gosto. 

Atende-me um empregado que bem conheço. Hoje [ontem] parece-me pouco satisfeito.

- Que se passa? - pergunto.

- Falta de folgas. Cansaço. Dias após dias sem folgar.

- Mas ontem [segunda-feira] estiveram fechados, aliás como é costume...

- Sim, mas foi o último dia. O patrão acaba de avisar-nos que durante os próximos dois meses não teremos folgas. Até 15 de Setembro estaremos sempre a funcionar.

- E vão ter alguma compensação financeira por isso?

- Nem mais um cêntimo. É pegar ou largar, disse ele.

- E ele nega-vos mesmo a folga semanal?

- Sim. Ainda tentámos que no desse meia folga, ao menos isso. Mas recusou.

 

Eis um quadro que se vai multiplicando por esse Algarve fora. Acumulam-se os clientes, acumula-se a receita, acumulam-se os lucros - e diminuem os direitos dos trabalhadores, a começar pelo mais básico: o direito ao descanso.

Até Deus, que é omnipotente, descansou ao sétimo dia. Estas entidades patronais, julgando-se num mundo em que são elas a ditar as leis, arrogam-se no direito de explorar até ao tutano quem lhes presta serviço. É o caso deste restaurante, que tem um número fixo de empregados: em vez de reforçar os quadros nos meses de maior afluência de público, adequando a oferta à procura com o recrutamento de trabalhadores temporários, estica ao máximo os recursos de que dispõe, insuficientes nesta quadra, negando-lhes contrapartidas remuneratórias ou as mais que justas folgas de compensação.

Às sete da tarde, as duas salas estão cheias e começa a formar-se fila à porta para jantar. Os empregados correm de mesa em mesa: já ao almoço ocorreu algo semelhante e terão pelo menos mais três horas seguidas neste ritmo frenético.

 

Não é difícil fazer uma estimativa perante tal afluência, multiplicando comensais diários por custo médio de refeição: a meio da semana, neste estabelecimento, já a despesa estará coberta. A partir daí, tudo é lucro. O problema é que estes patrões - que adoram intitular-se "empresários" - mostram pressa em matar a galinha dos ovos de ouro. São cada vez mais frequentes os casos de cozinheiros e empregados de mesa que, cansados de tanta exigência a tão baixo preço, procuram vias profissionais alternativas. 

Tenho um amigo, proprietário de três restaurantes em Lisboa sempre cheios, que se queixa disto mesmo:

- Eles deixam de aparecer, muitas vezes nem avisam. Temos de improvisar tudo, transferindo pessoal de um estabelecimento para outro às vezes em cima da hora de abertura.

- Porque é que vocês não lhes pagam mais? - indago.

- Eh pá, sabes, a vida está difícil para todos...

 

Segue-se o habitual rosário de queixumes da parte de quem prospera a olhos vistos mas só pretende dividir escassas migalhas desses dividendos. Em Lisboa como no Algarve.

Mesmo em férias, vou pensando: eis o País que não mora nas estatísticas nem na propaganda do "Portugal positivo". O País do lucro máximo de alguns à custa dos direitos mínimos de muitos. O País onde é possível trabalhar dois meses sem sequer meio dia de folga diária, quase em regime de servidão feudal. O País do trabalho sem direitos a que partidos que tanto invocam a "classe trabalhadora", como o BE e o PCP, fecham os olhos neste quarto ano contínuo de "geringonça".

Foi para subsidiar patrões como estes que o Governo Costa/Centeno decretou logo no início uma das medidas mais demagógicas de que há memória em anos recentes: a redução da taxa do IVA na restauração. Os restaurantes não baixaram preços nem recrutaram gente: limitaram-se a ampliar as margens de lucro. Enquanto o Estado via diminuir quase 400 milhões de euros a receita fiscal neste sector, que logo tratou de compensar por outras vias, esmifrando os do costume - nós, os contribuintes - com a maior carga tributária de sempre: 35,4% do produto interno bruto.

 

Pela primeira vez, confesso, não apreciei o peixe grelhado que comi aqui.

5 comentários

  • O excelso comentrista nunca ouviu falar de estabelecimentos abertos 18 horas, que servem desde brunches a late suppers? Nestes casos acha que têm empregados a trabalhar 18 horas por dia? Já ouviu falar em horários repatidos e turnos? Já parou para pensar que a ASAE anda em cima destas situações?
  • Ó Maria Dulce, deixe-se disso! Um pouco mais de empatia para com os que, como a Maria Dulce, têm origens modestas (é frequente, e até engraçado, encontrar gente que tendo tido a sorte de dar o salto classista, gera sintomas de disfarce, e até de aversão, perante as classes populares de onde provêm- o designado sindrome de neofito).

    "Encontrar formas de escapar ou, pelo menos, ser bem-sucedido nas inspeções, é algo a que muitos empregadores portugueses se dedicam, sendo comum a estratégia de esconder funcionários quando os inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) ou da Autoridade para as Condições no Trabalho (ACT) estão nas instalações.

    No que diz respeito às possíveis consequências das inspeções, os participantes num dos grupos de entrevistas em Portugal concordaram que, apesar de os empregadores poderem ser multados quando uma situação de exploração laboral é detetada, a maior parte das vezes não há medidas consequentes contra os patrões, enquanto os empregados podem ser prejudicados".

    https://www.google.com/amp/s/www.dn.pt/pais/interior/amp/agencia-europeia-denuncia-varios-casos-de-exploracao-laboral-em-portugal-9803074.html

    Mas qual cumprir a lei, qual carapuça!! Levanta a grimpa e é posta a andar (sobretudo em trabalhos que requerem pouca especialização -a maioria precário- e onde a oferta é, por isso, enorme, em Portugal).




  • Eu trabalho desde os 18 anos. E cumpro escrupulosamente.
    Gerir cerca 120 pessoas/dia com 30% de incumprimento diário , não é fácil.
    Não é falta de empatia, é falta de paciência para quem impunemente faz o que faz, publica fotos das redes sociais e justifica as faltas legalmente(!!!).
    Gostave de o ver aqui, no palco, como dizia o outro, Pedro. É facil dar opiniões quando se está a do " outro lado" , o lado em que os patrões são o demo.
    Eu tenho excelentes patrões. É certo que há quem não tenha , há quem explore os empregados, como é certo que há quem se aproveite de tudo mais um par de botas para explorar os colegas, porque no fundo, há que colmatar as faltas e em cima do joelho não se arranja substituição do pé para a mão. É que não sei se já ouviu falar nos direitos dos trabalhadores.
    Claro que os deveres são uma coisa completamente obscena
  • Já fui explorado. Com horários indefinidos e salário fixo. Depois deixei-me disso. Fiz-me Homem independente.

    Na Restauração, os que conheço (homens), querem é ser patrões e andarem por aí a pavonear-se, com o crédito pedido em nome "empresa" , num BM X-5, a "papar adolescentes", enquanto a mulher aguenta, aguenta, o barco.
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