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Delito de Opinião

O país das duas ortografias

Pedro Correia, 13.05.16

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«Somos o país das duas ortografias

Fernando Pessoa (1928)

 

Raras vezes tem havido um exemplo que ilustre de forma tão acentuada a diferença entre o país legal e o país real como o pretenso "acordo ortográfico" de 1990. A maioria dos portugueses sente-se de algum modo impelida a aplicá-lo, por força de uma resolução do Conselho de Ministros datada de Janeiro de 2011 que só deveria vincular o Governo e organismos sob a sua dependência, mas quase ninguém surge em sua defesa no espaço público. E os poucos que o fazem submetem o essencial do seu argumentário à lógica do "porque sim". Ou, numa versão ligeiramente mais sofisticada, "o melhor é não mexer porque já está assim".

Acaba de acontecer isso novamente com Henrique Monteiro, que, valha a verdade, sempre se distinguiu pelo seu proselitismo acordístico - de tal forma que se apressou a mandar aplicar o AO90 no Expresso, jornal que então dirigia, com uma rapidez digna de um Usain Bolt, em louvor da suposta era de ouro e mel na ortografia portuguesa enfim unificada. Esquecendo dois pormenores básicos: com Angola, Moçambique e restantes Estados ou territórios lusófonos africanos e asiáticos havia já uma ortografia unificada; com o Brasil essa unificação será sempre inatingível. Porque o que mais nos separa dos brasileiros são diferenças fonéticas, lexicais, de vocabulário e pronúncia.

Se eles andam de carona e nós à boleia, ou preferem apanhar o bonde enquanto nós vamos de eléctrico, ou combatem o cancer e nós o cancro, e escrevem Irã e Cingapura ao que nós chamamos Irão e Singapura, essas diferenças jamais serão esbatidas pelo efeito de uma putativa unicidade ortográfica imposta por uns quantos agentes políticos à revelia da comunidade científica nacional. Muito menos por força de um "acordo" que em vez de esbater diferenças antes as acentua ao pretender alterar a grafia portuguesa de palavras como concepção e recepção, sempre escritas assim pelos brasileiros.

 

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Henrique Monteiro vira agora baterias contra Marcelo Rebelo de Sousa. Pretendendo que o Presidente da República seja alguém que não é: um defensor do AO90. No seu entendimento, o Chefe do Estado só estaria autorizado a pronunciar-se sobre a matéria para aplaudir, como fizeram os seus antecessores Mário Soares e Cavaco Silva, nunca para criticar. Apesar de Marcelo ter sido signatário, logo em 1991, de um primeiro manifesto anti-"acordo" subscrito por 400 personalidades. E de ter publicado no próprio Expresso, mal foi eleito para Belém, um artigo de opinião escrito da forma em que sempre escreveu - sem as regras acordísticas. De resto como acaba de fazer um dos seus antecessores, Jorge Sampaio, num muito publicitado texto de opinião há dias estampado no Público, igualmente na grafia pré-AO90. Desta forma, Sampaio e Marcelo revelam sintonia com a generalidade dos portugueses.

Se o próprio Cavaco, um dos raros entusiastas desta grafia, confessou que continuava a escrever como sempre escreveu, porque não o farão todos quantos discordam dela?

 

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Segundo o ex-director do Expresso, Marcelo "fez muito mal" em intrometer-se na matéria "porque já milhares de crianças aprenderam a escrever de acordo com as novas regras". Curiosamente, não invocou o mesmo argumento quando o Executivo de José Sócrates, através da  Resolução nº 8/2011, datada de 25 de Janeiro de 2011, mandou aplicar as regras acordísticas daí a escassos meses, na abertura do ano lectivo 2011/12.

No mesmo jornal onde Henrique Monteiro escreve, e que há quase dez anos adoptou as normas acordísticas, vários comentadores e colunistas - Miguel Sousa Tavares, Pedro Mexia, Manuel S. Fonseca, Maria Filomena Mónica, José Cutileiro - continuam a escrever no correctíssimo português pré-AO90. E entre as personalidades já galardoadas com o  Prémio Pessoa - que o mesmo Expresso patrocina - figuram destacados opositores ao acordo, como João Lobo Antunes, Manuel Alegre, Mário Cláudio, Irene Pimentel e Eduardo Lourenço. Já para não mencionar os falecidos Herberto Helder e Vasco Graça Moura, que nunca esconderam divergências sérias em relação à ortografia que o professor Malaca Casteleiro e meia dúzia de iluminados conceberam, a reboque de conveniências políticas, em nome da convergência cultural luso-brasileira sem perceberem que nada disso passa pela convenção ortográfica. Como fica demonstrado pelo facto de o AO90 não ter aberto o mercado brasileiro ao livro português, ao contrário do que algumas almas ingénuas imaginavam.

 

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Chama Henrique Monteiro "país de loucos" a Portugal por ainda estar a discutir o AO90 quase 26 anos após o documento ter sido assinado, a 16 de Dezembro de 1990, no Palácio da Ajuda - com o então secretário de Estado da Cultura, Pedro Santana Lopes, como signatário em nome de Portugal. Não lhe ocorre discorrer sobre a principal causa da persistência da polémica: a profunda inconsistência de um "acordo" que é "um descaso político e jurídico", como lhe chamaram em 2012 os professores da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra José de Faria Costa (actual Provedor de Justiça) e Francisco Ferreira de Almeida. Um "acordo" concebido à revelia dos principais pareceres da comunidade científica portuguesa e contra a vontade da  esmagadora maioria dos nossos escritores, utentes qualificados do idioma.

Um deles, o filósofo José Gil, explicou a questão numa síntese notável: "O acordo mutila o pensamento."

Já em 1986 - quando houve uma primeira tentativa, mal sucedida, de impor ao País um "acordo" que mutilava ainda mais consoantes - Sophia de Mello Breyner Andresen, bem ao seu timbre, marcara uma distância poética face ao disparate ortográfico ao dizer que ação, sem o c supostamente mudo, "parecia o nome de um pássaro", como recorda a filósofa e ensaísta Maria Filomena Molder.

Ironia da história: após alguns políticos terem imposto o AO90 aos linguistas, vem agora um dos raros linguistas que o sustentam procurar impô-lo aos políticos, dizendo ao Presidente da República como  deve comportar-se em matéria ortográfica por inerência das funções que hoje desempenha. Não sei em que alínea da nossa lei fundamental se estriba Malaca Casteleiro para justificar tal absurdo. Deve ter frequentado um curso intensivo de Direito Constitucional sem o País saber, atrevendo-se a dar conselhos a um especialista na matéria. Parafraseando o ralhete dirigido por Henrique Monteiro ao Presidente na última edição do Expresso, eu recomendaria ao professor Malaca que "não é da sua competência nem politicamente avisado" agir assim.

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