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Delito de Opinião

O Pai de Famalicão

jpt, 17.09.22

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A notícia correu durante a semana, no Famalicão-Benfica um rapaz de 10 anos foi obrigado pela segurança do estádio a tirar a camisola do Benfica que envergava e viu o jogo em tronco nu, tendo até chorado durante a discussão que conduziu a tal corolário. Os motivos apresentados eram cristalinos, ele e seu pai tinham lugares na bancada de sócios do clube caseiro onde é "proibido" (assim mesmo) usar sinais de apreço por outros clubes. E isto é considerado tão normal, aceitável, que após o secretário de Estado dos Desportos e o presidente da Liga de Futebol - entidade que organiza a competição em causa - terem censurado a situação ainda veio a direcção do clube famalicense, muito ciosa de si mesma, contestar essas censuras e exigir desculpas. Isto mostra bem o estado aviltante em que segue o mundo do dirigismo futebolístico mas também dos seus participantes - e, já agora, o da imprensa que acompanha a bola, no seu paradigma guerrilheiro, entre os constantes comentadores furibundos e a glorificação de indivíduos infrequentáveis (como a celebração das artimanhas daquele dito "macaco", líder da claque portista, entre outros).

Benfica 3 Sporting 2 de 1979/1980

É certo que no caldeirão passional do futebol os adeptos têm de aprender desde miúdos a "comportarem-se", a perceber que em determinados contextos é necessário "entrar mudo e sair calado", arte que lhes virá a ser bem útil em outros palcos alheios às coisas da bola. Ainda me lembro das minhas incursões ao velho estádio da Luz, galgando a segunda circular e entrando bancadas adentro, manhoso no velho truque - então possível naquelas desorganizadas bancadas populares, ainda que eu já espigadote nos meus 15 anos  - do "ó vizinho, dá para entrar consigo?" aplicado ao adepto sénior e solitário de ar mais entusiástico ou simpático, algo que tinha aprendido desde bem mais cedo ali ao campo Branca Lucas, sede do popular Sport Lisboa e Olivais, então clube mais que veterano da III Divisão, zona sul. Atrevimentos esses que me conduziam ao célebre "Terceiro Anel" pejado de viscerais adeptos benfiquistas, e que me advinham do entusiasmo sportinguista daquela época, encetada sob o comando do professor Rodrigues Dias e seguida com Fernando Mendes, que culminaria com o almejado título após um longo jejum de 5 anos sem que o clube ganhasse o campeonato.

E bem me lembro de que no início do Benfica-Sporting (que os da casa venceriam através das costumeiras "fintas" de Chalana, mestre que era nos saltos para a piscina) lá me levantei, entusiasmado com um qualquer lance perigoso do ataque sportinguista. Para logo receber um coro de invectivas e reprimendas que me fez baixar a grimpa, caladinho que nem um rato até ao apito final. Tal como caladinho estive, ainda que esfuziante de alegria sarcástica, no magnífico Benfica 1 - Boavista 2, um delicioso jogo em que o genial e tão peculiar Vítor Baptista - que havia sido dispensado do Benfica, dada a sua consabida irresponsabilidade profissional - estraçalhou a sua antiga equipa, de forma tão flagrante que foi imensamente aplaudido pelos adeptos da casa.

Enfim, ficou-me a memória para sempre, e nisso alguma simpatia pelo adepto minoritário em casa alheia, sempre a torcer-se para não dar sinal de que é dos "outros". É raro ir ao futebol, espectáculo demasiado caro para as minhas posses, mas quando me acontece ir a Alvalade - ou porque levo algum sobrinho-neto, noblesse oblige, ou porque algum amigo me convida -, lá está sempre (e às vezes acompanhando-me) um qualquer não-sportinguista, ao qual desejo que se saiba "comportar", para assim evitar os grunhos, esses omnipresentes no mundo da bola. Há pouco, julgo que na época passada, um amigo teve a caridade bem-intencionada de me convidar para um Sporting-Benfica (como de boas intenções está o inferno cheio os de Carnide foram ganhar, raisparta). E mesmo à minha frente, nos bancos imediatamente abaixo, estavam três jovens no final da sua adolescência, num buço talvez já universitário. Um deles, logo de início ali se mostrando, no menear e no gemer, dado a benfiquismos - e logo lhe dei o aviso, sorridente, de mais-velho "olha que é capaz de ser melhor controlares-te", que estávamos em pleno covil do leão, o reduto dos lugares cativos (aqueles que agora, devido a qualquer imbecil decisão, se chamam "gamebox"). O rapaz atrapalhou-se, pediu desculpa, coisa que lhe disse ser inútil, pelo menos para mim, mas que evitasse ele que alguém o viesse a chatear. Pois, repito-me, os grunhos são omnipresentes no mundo da bola, sejam lá quais forem as cores com que se disfarçam. No fim, sacaninha, lá saía ele com os seus amigos, com um ricto meio sorridente meio atrapalhado, e lá me despedi com um "parabéns, raisparta!".

Enfim, tudo isto é o perorar memorialista, coisa comum nos velhos solitários. Mas é o preâmbulo da questão que me parece ser a única realmente relevante face ao acontecido na semana passada no estádio do Famalicão: que merda de pai é que vendo o seu filho de 10 anos ser obrigado a despir-se fica no estádio a ver a bola?

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