O ovo estrelado
Ao princípio era a galinha.
Calma, não pretendo tomar partido na vexata quaestio (esta expressão é em atenção dos leitores juristas, que gostam de fingir que sabem Latim) de apurar se veio ela primeiro, ou o ovo; e ainda menos consignar, neste recanto obscuro, uma piada de mau gosto sobre as deputadas do PAN.
O que quero dizer é que uma coisa é uma galinha que esgaravata até ao pôr-do-sol e recolhe para a noite depois da farelada (farelo, couves segadas e água); e outra, muito diferente, um bicho engaiolado alimentado a ração. É bom de ver que os ovos que produzem são muito diferentes.
Tomemos um ovo fresco (saído pelo ducto apropriado há um ou dois dias) da primeira galinha. Da segunda nem mo-lo digas, que a clara espraia-se na frigideira criando uma mancha quase tão vasta como a corrupção no PS, e recompensa inferiormente paladares amantes da tradição, refractários ao paleio gourmet.
Há que frigi-lo. Óleo ou azeite? O óleo já foi aconselhado pela classe médica, que tem o hábito deplorável de recomendar asneiras, mas a prática reconfortante de as substituir de dez em dez anos. Seja azeite, que o óleo é uma mixórdia de origem suspeita, ainda que de uso intensivo na cozinha. Vozes radicais gostariam de o erradicar, uma tese que não subscrevo por ter dúvidas sobre se alguns não serão apropriados para este fim, em vez do de lubrificar engrenagens metálicas.
Não convém ser muito poupado: a quantidade tem de permitir que, inclinando ligeiramente a frigideira, se possa recolher com uma colher o bastante para entornar por cima da gema, no momento certo para criar uma película branca que deixe a gema líquida. E a temperatura? Não pode ser muito alta, senão tosta os bordos da clara. De modo que o ovo vai para o seu natural destino quando, pondo uma mão espalmada um palmo acima da frigideira, se sinta o quente.
De sal umas pitadas, espalhadas com dois dedos criteriosos em cima da gema (antes da manobra de entornar o azeite), mas refinado - de todo o modo uma invenção de um demo menor preguiçoso - nunca.
O olho é, como nos negócios, fundamental: o ovo está estrelado quando já não exista clara no estado líquido, e retirado antes de começar a estar tostado nos bordos. Nas pequeníssimas bolsas onde exista ainda algum azeite, a ponta de um bocado de papel absorvente chupa-a.
E voilà: não é um ovo estrelado de snack, com a gema meia cozida; não é um ovo estrelado do restaurante, puxa-saco seja ele; e não é um ovo estrelado citadino.
Ignoro se Bertha Rosa Limpo ou Maria de Lourdes Modesto, e menos ainda João da Matta, alguma vez desceram a esta coisa tão simples. Mas desço eu, que a distância para mim é muito menor. E depois tenho um amigo que me disse há dias no Facebook que eu nem um ovo conseguia estrelar, o grande insolente, decerto ignorante do meu texto absolutamente seminal sobre a distinção entre o bacalhau frito e o fritado Que ponha aqui os olhos, a benefício do seu aprimoramento como cozinheiro.