O outro não
No seu estilo redundante e prolixo, que detesto, António Barreto diz o que há a dizer sobre a guerra na Ucrânia. O estilo é adjectivo, a ideia é substantiva. E esta é a de que há um lado bom e um lado mau. Concordo, e respigo esta frase: “Sublinhar as responsabilidades europeias na agressão à Ucrânia é desonesto”.
Nem de propósito. Porque hoje este professor doutor de Coimbra meu Deus, num texto cómico, vem com o paleio habitual da censura do agressor, mas associada à absolvição por haver causas de exclusão da ilicitude (para usar o género de palavreado que o próprio, decerto, consideraria rigoroso).
O lado cómico: o homem preocupa-se muito em explicar por que razão as suas posições neste assunto são as de uma pessoa “assumidamente liberal e crítico recorrente da esquerda iliberal”.
Esta distinção é claramente desonesta: pode-se ser liberal nos costumes – e sê-lo é uma inerência da doutrina, na sua declinação europeia e actual (para os povos de cultura gringa a coisa complica-se por a palavra ter um significado diferente) – e estatista na governação, mas isto cabe na social-democracia ou no socialismo, não no liberalismo. Ser liberal de esquerda é um oxímoro: a esquerda preocupa-se com a igualdade e os liberais com a liberdade, que inclui a dimensão económica. De modo que, Vital, tenha paciência: de liberal não tem nada e de socialista tudo. E não venha com essa distinção especiosa de “esquerda iliberal”: esta é comunista, que Deus nosso Senhor, na sua infinita misericórdia, lhe perdoe. Finalmente, a existência de genuínos liberais que se dizem de esquerda também não lhe adianta: são tipos que têm a cabeça cheia de pregos conceptuais, para além de muitos acharem, talvez com razão, que na esquerda há abundância de gente gira à qual não convém desagradar.
Estas brincadeiras semânticas nada têm de inocente: venha a nós o Estado, que por ele rezamos; e venha a nós a etiqueta do liberalismo, que parece que essa merda agora tem algum prestígio e convém confundir tudo.
Mesmo estando implicitamente grato a Vital, que me dá tão bons pretextos para abundar em considerações, não vou desta vez escabichar-lhe o texto – ele não diz verdadeiramente nada de novo, donde eu também não diria. Retenho apenas o seguinte argumento, por já o ter visto usado por toda a casta de gente que bem no fundo simpatiza, por múltiplas razões, com o autoritarismo putinesco:
“... o abandono pela Ucrânia do seu estatuto de neutralidade em 2014 e ao pedido de adesão à Nato - o que não podia deixar de ser visto pela Rússia como um grave risco para a sua segurança (como seria para Washington um pacto militar entre o México e a Rússia ou a China...)”
Parece, mas não é, lógico: a Ucrânia, como a própria invasão ilustra, tinha e tem todas as razões para temer o urso vizinho; o México não tem nenhuma razão para temer o Tio Sam, mesmo que no passado longínquo as coisas não tenham sido exactamente assim; os países bálticos, e outros que não estão suficientemente longe, têm todas as razões para se abrigarem na OTAN, que é uma organização defensiva; e a China sabe, como toda a gente, que o único obstáculo sério à absorção de Taiwan são os EUA, o que significaria, no caso absurdo de uma aliança entre a China e o México, que a única interpretação possível era a de um acto hostil do México aos EUA.
Digamo-lo claramente: quem quiser encontrar na prática pretérita e presente dos EUA provas de imperialismo encontra; e o país, as suas instituições, as suas personagens, as crenças do seu cidadão médio, os seus costumes, o seu bullyismo, são fonte permanente de irritação para quem, tal como eu, não seja um americanófilo. Mas os EUA defendem desde sempre os valores que definem o que vagamente crismamos de Ocidente. A Rússia não, e a China ainda menos. E se a Rússia algum dia vier a registar, como muitos dos seus cidadãos querem, alguma mudança dos seus padrões de vida pública, será na direcção do Estado de Direito como o entende o Ocidente – não o Ocidente que vai resvalar para formas autocráticas de governo.
De modo que António Barreto está do lado certo da história. O outro não.