O operário que ousou quebrar as grilhetas
Jerónimo de Sousa
Foi ele o criador da “geringonça”, proporcionando oxigénio político ao derrotado António Costa, com uma frase proferida após a longa noite eleitoral de 2015: «O PS só não forma governo se não quiser.» É ele também a declarar extinta a inédita coligação parlamentar das esquerdas, com outra frase: «Seria quase um golpe de mágica se acontecesse.» Referia-se à hipotética aprovação do Orçamento do Estado para 2022 pelo PCP, antes de rematar: «Não acredito em bruxas.»
Foi deste modo – como se cumprisse instruções de um “colectivo” sem rosto – que Jerónimo Carvalho de Sousa, 74 anos, pôs fim ao mais recente ciclo político. Nunca faltaram críticas no PCP à colaboração activa entre socialistas e comunistas, silenciadas pelo ”centralismo democrático” que lá vigora: as bases não contestam em público a decisão das cúpulas.
Mas nem Jerónimo, que ascendeu em Novembro de 2004 a secretário-geral, negará esta evidência: a “geringonça” foi péssimo negócio para o PCP, tanto em influência social como na aritmética política.
Antes de ter viabilizado seis Orçamentos do Estado do PS, a CDU (PCP + Verdes) tinha 16 deputados – hoje restam-lhe 12, uma quebra de 25%. Perdeu mais de cem mil eleitores (441.852 votantes nas legislativas de 2011, 332.473 oito anos mais tarde). Pior foi o recuo no terreno autárquico, outrora um dos seus bastiões. Detinha 28 presidências de câmaras municipais – hoje restam-lhe 19, menos 27%, enquanto o número de vereadores comunistas baixou de 174 para 148 em termos nacionais. Viu fugir-lhe municípios emblemáticos como Beja, Loures, Barreiro e Almada. Passou de 539.694 eleitores autárquicos para 410.584.
A rendição ao PS, seu histórico adversário nos anos decisivos em que se implantou a democracia em Portugal, constituía ameaça vital ao campeão da resistência entre os partidos comunistas da Europa. Ensina o marxismo-leninismo que o capitalismo não cai por si: tem de ser derrubado pela força. Tarefa impossível para um partido fraco.
As críticas internas já transpareciam nas redes sociais. Jerónimo via, ouvia e lia: não podia ignorar. Quebra agora as grilhetas, como diriam Marx e Engels. Mas podia tê-lo feito há um ano, quando o Bloco de Esquerda descolou da “geringonça”, votando contra o Orçamento para 2021. Só o comprovado sentido da responsabilidade do PCP o manteve fiel ao compromisso: viviam-se tempos de emergência nacional devido à pandemia.
O “muro de Berlim” que António Costa anunciou ter deitado abaixo volta a erguer-se. Estava inscrito na ordem natural das coisas: aquela fugaz assinatura à porta fechada do acordo de legislatura imposto por Cavaco Silva como contrapartida para empossar o Governo, em 2015, já prenunciava reserva mental de parte a parte. Nem Costa nem Jerónimo se deram sequer ao incómodo de posar para a fotografia.
Apreciador de poesia, o secretário-geral de raiz operária talvez declame José Régio: «Sei que não vou por aí.» Régio nunca foi marxista, mas este verso pode servir de lema ao PCP a partir de agora.
Texto publicado no semanário Novo