O novo pântano
Li algures, mas não fui conferir, que se a AD se tivesse coligado com a IL teria ganho não os 8 deputados que esta conseguiu, mas 9; a absurda confusão de siglas com a ADN terá custado 2 ou 3; e não é preciso dizer que se tivesse havido uma coligação pré-eleitoral com o Chega seria preciso o novo governo ser verdadeiramente desastrado, ou deixar-se minar por contradições internas, para não durar uma legislatura, para além de poder fazer as celebradas reformas de que toda a gente fala, tal seria a esmagadora maioria.
Essas reformas não se farão senão em versões edulcoradas e tíbias. E isto apenas se a pulverização partidária, a tenaz oposição do PS, desapossado do lugar que julga lhe pertence como estando na ordem natural das coisas, o berreiro tradicional do Bloco, agora acrescentado pela nova coqueluche do Livre, que se distingue daquele por razões que só intelectuais de fino recorte esquerdoso entendem, mais a agitação sindical e das ruas promovida pelo PCP no estertor da agonia, não tornarem a estabilidade política numa distante memória.
Só isto? Não, não seria suficiente. Mas há o Chega. E aqui temos definitivamente a burra nas couves porque o resultado da AD e o da IL nem sequer permitem aprovar orçamentos, mesmo com a abstenção daquele partido. Contando com dois mandatos que virão provavelmente do exterior para a AD o total de votos da direita é 89, contra os 91 da esquerda. Não seria impossível talvez comprar o PAN oferecendo, por exemplo, alcatifas para os canis municipais, mas mesmo assim ainda seriam precisos uns queijos limianos para uns desalinhados ou, hipótese horrenda e improvável, os votos do Livre.
Não dá. Em devido tempo, adiantei por que razão (na minha opinião, que naturalmente respeito), a cerca sanitária em torno do Chega era um claríssimo erro; e igualmente expliquei mais tarde os motivos por que, apesar disso, iria votar AD.
E durante a campanha fechei a matraca, por autoimposta disciplina. Não que interessasse: o único ser vivo que estou absolutamente seguro influencio é o meu fiel Cacau, que infelizmente não vota.
Sucede que agora há a ideia peregrina de que é possível garantir o apoio do Chega oferecendo-lhe em sinceras declarações um grande respeito pelos mais de 1 milhão e 100.000 votos que obteve, e mais coisa nenhuma, salvo possivelmente uma vice-presidência da AR – a mesma que lhe foi negada no tempo em que se julgava que, por os deputados daquele partido serem tidos por sarnentos, o eleitor não quereria o contágio da doença.
E isto apostando no precedente firmemente estabelecido desde os longínquos tempos do partido de inspiração eanista: quem deite abaixo um governo paga por isso, nas eleições seguintes, um pesado preço. Que o Chega não terá o atrevimento de querer pagar.
Ahem, se há coisa em que Ventura se distingue, entre outras, é na capacidade de vitimização. E como o vasto ramalhete de ofertas para todos os grupos que reivindicam alguma coisa, e de uma impressionante quantidade de bens públicos (reformas milagrosas na Justiça, no SNS, na Educação e no mais que está um caco), mais a promessa de redução de impostos, só poderia ser podado de contradições, e reduzido na ambição, se o Chega fosse obrigado a pôr as mãos na massa, resulta que ostracizá-lo lhe mantém intacto o capital, e aumenta-o com a lamúria de que não o deixam fazer nada. O gambito de que esse capital será muito enfraquecido no caso de a casa ruir porque o Chega não a amparou é isso – um gambito. E mesmo que alguma penalização sobreviesse o problema, provavelmente, manter-se-ia.
Pessoas prudentes como eu não sou não preveem o futuro porque este só vai acontecer de uma maneira e há muitas de o imaginar. E decerto apreciaria que não me viesse a ser dada, pelos factos, razão.
Mas países ricos podem dar-se ao luxo de viver em estado de indecisão e entreterem-se numa quantidade de geometrias de poder por os eleitorados estarem pulverizados. Enquanto isso a economia marcha e até pode dar-se bem porque não são precisos grandes voos legislativos nem reformadores.
Entre nós são. A menos que achemos que uma população que envelhece e encolhe porque os jovens fogem e não nascem suficientemente outros, sendo substituídos por trabalhadores de arribação de outras paragens, com menos formação, enquanto na ladeira do desenvolvimento vamos deslizando para o fundo, é um destino fatal.
Desejo que por entre os pingos da chuva o governo AD consiga reformar alguma coisa e dure tempo suficiente para o fazer. Se porém assim não acontecer já era mais do que tempo de se perceber que o país mudou: a gesta esquerdista e lendária do 25 de Abril vive na memória dos que a viveram, mas estes são cada vez menos; a AD não é a direita, é o novo centro; e o melhor serviço que o PS pode prestar é ficar acantonado no papel de oposição porque a democracia precisa dele para isso – mas para mais coisa nenhuma.