O muro e a transição
A queda do Muro de Berlim não foi um acontecimento estritamente alemão, antes o símbolo da reunificação da própria Europa. Ao longo dos últimos 25 anos assisti à transição dos países do bloco socialista para o sistema liberal. Vi como era antes da mudança, testemunhei episódios revolucionários e fui assistindo às vicissitudes da transformação, sobretudo na Hungria. Apesar de ter proporcionado desenvolvimento e liberdade, a transição foi um processo também traumático, ainda mal compreendido em Portugal. Na primeira década, uma geração perdeu a segurança no emprego e muita gente mergulhou na pobreza. Empresas socialistas foram compradas por tuta-e-meia, nomeadamente pela concorrência ocidental, através de testas-de-ferro, só para serem desmanteladas. Os ocidentais ficavam com menos um competidor, os testas-de-ferro ganhavam dinheiro com os terrenos e as luvas. Assim se fizeram fortunas de conhecedores que souberam aproveitar a privatização apressada da economia, passando directamente do aparelho repressivo para a burguesia capitalista.
O mexilhão pagou de muitas maneiras, pela inflação ou pelas leis imprecisas que tornavam os investimentos arriscados, engolindo as poupanças. O novo poder não era exactamente novo, pois o antigo regime tinha forte inércia. Os agentes da polícia secreta continuaram tranquilamente a fazer as suas negociatas. Escrevi um romance sobre o tema, com o título Territórios de Caça, editado pela Quetzal, tentativa de extrair dessa história algumas impressões sobre a natureza humana. O regime comunista não desapareceu de um dia para o outro, as pessoas que tinham apoiado a ditadura continuaram a fazer a sua vida. Já não prendiam dissidentes, mas há outras formas de perseguir. Curiosamente, alguns amigos que tinham sido opositores do regime (artistas, professores, intelectuais) ficaram desempregados e em dificuldades, enquanto prosperava a nova classe de empresários ex-comunistas travestidos de capitalistas. As minorias étnicas foram altamente prejudicadas, pois o empobrecimento atingia primeiro os que tinham menor influência. Na Hungria, as maiores vítimas foram os ciganos, grupo discriminado, que já vivia em pobreza, pois os comunistas tinham proibido o nomadismo.
As fábricas foram reconvertidas. No campo, muitos agricultores iludiram-se e acabaram na falência. Os ocidentais investiram enormes somas, mas também fizeram grandes lucros, alguns duvidosos, aproveitando ao máximo os corruptos que iam sendo eleitos, sobretudo pós-comunistas, que se reciclaram em formações ditas socialistas, usando parte do aparelho do antigo regime. Estas formações continuam a ser escutadas com respeito deste lado da antiga cortina de ferro. Houve também colapsos financeiros, antes e depois da adesão europeia, sendo que esta incluiu restrições estranhas, sobretudo no acesso ao dinheiro da agricultura e na circulação de pessoas.
Enfim, passaram 25 anos e estes países superaram os traumas devido à sua forte identidade nacional. O balanço da transição é para eles positivo, ganharam democracia e liberdade, mas muitas críticas ocidentais não escondem forte sobranceria, omitindo sacrifícios que explicam a crispação nos debates políticos, o quase desaparecimento da esquerda pós-comunista, a desconfiança em relação à UE e o cinismo do eleitorado. A absorção da RDA (onde os pós-comunistas ainda têm razoável votação) foi feita à custa de uma gigantesca injecção de capital, que de forma indirecta mobilizou todos os países europeus, mas o resto da Europa de Leste não teve as mesmas facilidades. Muitas pessoas esquecem-se disto. Espera-se destes países que andem na linha e não guardem ressentimentos.