Deixei ontem uma breve nota sobre a morte de Marco Paulo. Mesmo estando habituado ao fel desabrido de algum do comentariado anónimo no DO - uma espécie de secção "Muro de Fel" do blog - fiquei surpreendido com o azedume resmungão de alguns comentários recebidos. A alguns, que me eram dirigidos, apaguei-os, até por se tratar de um postal "in memoriam".
Tudo se originou por eu ter usado a expressão "cantor romântico", a qual é de uso corrente no âmbito da música "popular" - termo este também de vasta amplitude, que em inglês abrange (pelo menos) o que dizem ser música "pop" e "folk", algo diverso na nossa língua dado que damos um uso diferente a música "folclórica". Logo surgiu um (típico) comentário empertigado, seguido de outros, refutando o uso de "romântico". Não se tratou de uma mera discordância, mas sim de um explícito "vá estudar" (na wikipédia, ainda por cima), logo seguido de invectivas pessoais e de, num registo não menos "doutoral" mas não tão conflitual, considerações de que "o termo 'romântico' deve ser empregado com propriedade".
Um outro anónimo também se empertigou, insurgindo-se contra o breve postal que dediquei ao cantor, clamando "Parece que alguns não sabem que todos os dias morrem pessoas de doença. O importante é escrever sobre algo que possa ser útil e fazer a diferença e fazer algo pelos que estão vivos.". Esta abrasiva invectiva mostra, mais do que tudo, um profundo desnorte, uma desorientação. Ou seja, um desconhecimento da localização própria. Pois é um comentário-exigência colocada num blog, uma plataforma comunicacional gratuita e voluntária, em que nem os escribas ganham nem os leitores pagam. Deste modo não há qualquer "deontologia" subjacente, não existe qualquer obrigatoriedade para se escolherem temas "úteis" ou "diferenciadores". Em suma, quem escreve fá-lo sobre o que lhe apetece. E se os leitores podem reclamar nos órgãos de comunicação social ou noutro tipo de publicação "clássica" remunerável esse "utilitarismo" ou essa "pedagogia", não têm qualquer razão para o fazer em blogs. Ao dizê-lo denotam-se desnorteados. Ou demonstram-se ignorantes.
Ainda assim pego no mote desse comentador pimpão e enveredo aqui pela via "pedagógica", respondendo aos empertigados comentadores contestatários do uso de "romântico", julgando-se sábios por o reclamarem monopólio do "romantismo" oitocentista, esse tão heterogéneo estado de consciência presente em diversas expressões artísticas e intelectuais. De facto, essa ideia não é correcta - e torna risível a mão na anca dos furiosos comentadores. Pois a expressão "romântico" atribuída a alguns tipos de música "popular" não deriva apenas do uso, não é uma extensão vinda de um facilitismo, ou uma metáfora preguiçosa. Mas advém da história do termo. Vou avançar alguma fundamentação sobre isso - nem que seja para tentar que os comentadores que discordam dos conteúdos dos postais os debatam, em vez de os invectivarem e aos seus autores.
Para isso cito Jacques Barzun, de cujo magnífico "From Dawn To Decadence: 1500 to the present, 500 years of western cultural life", fui reler excertos há muito pouco tempo, a propósito de ter ido ouvir Berlioz e falar sobre o "Frankenstein" de Mary Shelley, dois "românticos", desse Romantismo oitocentista. O historial dos diversos rumos semânticos do termo "romântico" é assim resumido pelo grande historiador:
"The use of romantic in English goes back to the 17C when it was used to denote imagination and inventiveness in storytelling and, soon after, to characterize scenery and paintings. (...) At the core of the epithet, obviously, is a proper name: Rome, Roman. From the start, the image is many-sidded. Centuries after the fall of the empire, the vernacular spoken along the Mediterranean was no longer vulgar Latin but a variable dialect called roman. From it came French, Spanish, Italian, and other romance language, still called by that name in academic departments. After a time, roman was applied to tales written in that dialect as spoken in southern France.
These tales were often love and adventure, as contrasted with epic narratives or satires. In French today the word for novel is still roman, while in English a romance is one kind of novel and by further extension one kind of love affair. On this account romantic gets used to denote the blissful state and character of the participants." (...) - (467, e o assunto segue na página seguinte).
Enfim, não é grave que não se tenha um entendimento aperfeiçoado do termo "romântico". E que se debata isso num blog, nos seus postais e nos comentários. Mas para quê surgir altaneiro e abrasivo, invectivador? Quando nem sequer se tem o conhecimento? E mesmo quando se tem?
Dito isto, aqui replico o postal sobre "canções românticas" que coloquei antes no meu Nenhures. Nem que seja para que os resmungões possam resmungar...
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[I Don't Want To Talk About It (from One Night Only! Rod Stewart Live at Royal Albert Hall)]
Então agora gostas do Marco Paulo?, perguntam-me por mensagem os (quase)censores Não tanto das suas canções. Mas gosto da sua figura, por ser popular e pelos enxovalhos que recebeu ao longo da carreira. Que - e com teor bem pior - perduraram para além daqueles 70s e inícios de 80s quando todos os músicos portugueses (os do rock, acima de tudo) eram destratados em público - à excepção, claro, dos "de intervenção" - coisa que minguou com o êxito do Rui Veloso.
A evolução do tratamento dado a Marco Paulo, paulatinamente tornado mais "respeitável", denota não só a real evolução cultural do país mas mais mostra como esta evolução veio do "povo" (sempre dito ignorante) e não da pequenota-burguesia, feroz de preconceitos e de arrogância censória, que julga "pedagógica".
Se gosto de cantores românticos? Sim, claro, amo Sinatra. E ouvi dezenas de vezes esta cançoneta romântica, verdadeira súmula da coisa: imaginando-me o velhote atrevido (jamais sugar-daddy, atenção...), o velhote atrevido, dizia, enleado com a bela jovem desvanecida? Antes e hoje, ainda mais no agora mesmo!? Não confesso tal coisa, apenas deixo a dúvida...
E avanço até que esta versão tem uma dimensão sociológica. Esmiucei-a tanto que até escrevi sobre o assunto: muitos saberão que sou dos Olivais, e sobre isso me repito. "O que é isso dos Olivais?", perguntarão. A resposta está aqui, nesta canção romântica: "Olivais" é o meneio e a onomatopeia que o velhote xunga ("pimba" também se disse) dedica aos exactos 2'35'' à tão bela jovem encantada.
Aqui entre nós, rapaziada, quem não gostará de canções românticas? Se estas assim, vividas assim...?
Viva Marco Paulo. E os seus colegas...
18 comentários
Cidadão 25.10.2024
Li o seu “post” de ontem. Claramente uma homenagem a Marco Paulo, que tinha acabado de falecer. Questionar nos comentários, naquela ocasião, se era cantor romântico ou não, pareceu-me um despropósito e uma falta de consideração por alguém que, quer queiramos quer não, era acarinhado e estimado por muitos portugueses (mulheres e homens).
Há por aí uma paranóia linguística que não diz em português o que aparenta normal noutras línguas. As expressões românticas estão nesse quadro: do 'I love you' ao 'amo-te' vai toda uma vertigem de afundamento no romântico!
Há uma "paranóia linguística" reinante, concordo. E há também outra coisa. O DO tem alguns milhares de leitores. E um punhado, pequeno, de "chatos", que se afadigam em contestar quase tudo. É pungente.
Nada como uma bela balada romântica. Os metaleiros têm as mais belas de todas nos seus repertórios. Mas em querendo referir alguém mais "popular", o Júlio Iglesias, por exemplo, é um dos maiores cancionotistas românticos de todos os tempos. E olhe, não estou bem certa, mas creio que o Júlio não nasceu no século XIX.
Maria Dulce Fernandes, o Marco Paulo não era um cantor romântico, ou as suas canções/músicas, melhor dizendo, não eram românticas. Eram "batidas" , ou musica popular, demais, para serem românticas. Ouça o exemplo da, aqui, apresentada do Rod Stewart e as várias do Tony de Matos para, estas sim, serem canções/musicas românticas. Mas, podemos considerar um bom cantor de musica popular.
Maria Dulce Fernandes, sim, o Julio vai já velhote, mas ainda é de XX... Dos metaleiros não conheço grande coisa, mas do grande Hard muito "dancei" (e fumei) o Stairway to Heaven
Há muito que já não há império, mas Viena continua a ter museus, salas de concerto e cafés que Lisboa não tem nem nunca teve. Acredito que possa ser enfadonha mas, para além da qualidade de vida, está no centro da Europa. Em Lisboa as alternativas são os peixes da Trafaria e da linha de Cascais e 600 km até Madrid. Vivo cá, trabalho cá, e digo-lhe: não deixa de ser um deserto cultural. É o mal de sermos periferia.
Não será. Conheço-a mal, em qualquer caso, e há não mais que sete anos. Mas o Albertina encanta e um café, um simples "espresso", pedido numa qualquer esplanada e que chega, elegante, em imaculada bandeja própria, com um pequeno copo de água a acompanhá-lo, sabe tão bem...
Adolfo Mesquita Nunes, Ana Lima, Ana Margarida Craveiro, Ana Sofia Couto, Ana Vidal, André Couto, Bandeira, Cláudia Köver, Coutinho Ribeiro, Fernando Sousa, Francisca Prieto, Inês Pedrosa, Ivone Mendes da Silva, João Campos, João Carvalho, José António Abreu, José Gomes André, José Maria Pimentel, Laura Ramos, Leonor Barros, Luís M. Jorge, Marta Caires, Patrícia Reis, Paulo Gorjão, Rui Herbon, Rui Rocha, Tiago Mota Saraiva