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Delito de Opinião

O morto vivo

José Meireles Graça, 10.10.23

Imaginemos que em 1908 não tinha havido um assassinato do rei; que, dois anos mais tarde, a esquerda lisboeta de então, golpista, e alguns conservadores equivocados,  não se tinham achado com forças para derrubar o regime ou que, tentando-o, o Exército deitava os insurgentes para correr.

Não foi assim, claro, porque a motivação dos revoltosos era sustar a decadência do país e este, céptico ou alheado que estava, não teve força anímica para resistir – a monarquia não tinha amigos em quantidade suficiente.

Correu mal. O que veio a seguir foi um novo país no papel (a esquerda, então como agora, legisla que se farta) mas de progresso verdadeiro nicles enquanto a desordem nas ruas, a violência sectária, a instabilidade permanente e a participação na Grande Guerra criaram o pano de fundo para o advento da II República.

Salazar nunca resolveu o problema da sua sucessão, e muito menos favoreceu os seus apoiantes monárquicos porque a sua prioridade era manter-se a si e ao regime, donde o que lhe convinha era conservar acesas as esperanças da Restauração sem fazer absolutamente nada por ela.

A III República herdou da I o messianismo desenvolvimentista e progressista: agora é que vai ser. E como se define por ser em tudo o oposto do Estado Novo, e este o contraponto da balbúrdia de 1910 a 1926, a que pôs cobro, o regime actual acha-se, sobretudo à esquerda, herdeiro do progresso registado, segundo a lenda, a partir da queda da monarquia.

Claro que progressos, tanto legislativos como materiais, teriam sido possíveis sem mudança de regime; que esta não resolveu nenhum dos problemas do país e pelo contrário transformou-o num imenso manicómio autogestionário quando não foi a ditadura feroz de Afonso Costa (como se pode ver neste ensaio de Vasco Pulido Valente); e que é precisamente a memória histórica da inutilidade da mudança, e o tempo entretanto decorrido (mais de 100 anos), que fazem com que a restauração da monarquia pareça uma ideia romântica e irrealizável.

Só por estas duas razões? Creio que não. No último 5 de Outubro, naquelas comemorações ocas em que a classe política se celebra a si mesma enquanto o país boceja, entretive-me numa rede social, como é meu hábito, a abundar em considerações. E, numa discussão com uma amiga republicana, ela enterrou-me com uma resenha histórica sobre os fundamentos da instituição monárquica, não reconhecendo um novel que eu inventei para a ocasião. E, como citou Locke e outros autores, fosse eu menos vaidoso e desistia. Mas não, tenho mesmo a opinião que segue:

Como o sentimento anti-monárquico assenta na ideia de que a herança de um lugar relevante na vida colectiva fere o princípio da igualdade cidadã, e como eu entendo que o princípio da igualdade, nesta e noutras instâncias, não tem (e é inconveniente que tenha) um valor absoluto, tencionaria tentar demonstrar o ponto se estivesse disposto a reflectir e a argumentar. Prefiro guardar as energias, porém, para coisas mais amenas e terrenas e faço votos para que Marcelo consiga inexistir na cerimónia, por exemplo.

As monarquias constitucionais (e outras não são admissíveis no Ocidente) não contendem com a igualdade dos cidadãos perante a lei: o Chefe de Estado e outros políticos, por exemplo deputados, têm regimes legais diferentes do cidadão comum, dada a especificidade das suas funções. E que o princípio de que o Presidente, uma vez eleito, o é de todos os Portugueses e não apenas dos que o elegeram, cabe melhor a um tipo do qual conhecemos a família e a ascendência do que a um entertainer qualquer que caiu no goto do eleitorado, parece também bastante evidente. De modo que de igualdade estamos conversados, excepto pelo facto de que um chegou lá por consentimento expresso dos eleitores a quem vendeu o seu peixe e outro chegaria por ser filho, neto, bisneto e por aí fora de quem é. O qual peixe continuaria porém a ser vendido por quem realmente detém poderes executivos, como é necessário em democracias. Para quem ache que somos elos de uma corrente, isto é, o país é feito dos vivos e dos nossos mortos, e que não há melhor bandeira que uma de carne e osso, um rei parece talvez escolha mais assisada.

Os monárquicos costumam usar muitos mais argumentos, que não vou repetir, entre outras razões porque a ideia da restauração não me parece, no actual momento histórico, que seja popular: daí não viria o aumento do salário mínimo ou uma melhor ordenha do úbere europeu, por exemplo.

Sucede porém que dois acontecimentos recentes me levam a pensar que as coisas são como são até ao dia em que passam a ser de outra maneira: um foi a Jornada Mundial da Juventude; e o outro o casamento da Infanta.

No primeiro a Igreja Católica, acantonada no papel de uma ONG estimável a quem ninguém liga nenhuma, mostrou que está bem viva, e precisamente naquele sector da população que tem mais futuro, isto é, os jovens; e no segundo que à família real (ducal, se quisermos ser rigorosos) faltou a pompa das casas reinantes. Mas: isto terá, além de se tratar apenas do casamento da filha de um pretendente, explicado algumas ausências difíceis de compreender, caso das casas reinantes em Espanha e Reino Unido; e o que faltou em aparato sobrou em autenticidade, dignidade, trabalho desinteressado e genuína alegria. Esteve bonita a festa, pá, a mesma, e outra, juventude, deve ter notado.

Os dois eventos têm a liga-los a tradição, cuja morte, como a de Mark Twain, talvez tenha sido declarada prematuramente.

Católico é improvável que venha a ser. Monárquico já fui menos.

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