O maravilhoso mundo das membranas (2) - tipos de membranas
Continuando com a série, explicarei agora quais os tipos de membranas existentes. Primeiro falando da técnica em uso e depois, noutro post, do material em si.
2.1. Tipos de membranas - Técnica
As membranas podem ser divididas em membranas para aplicações com líquidos e membranas para aplicações com gases. As aplicações com líquidos são as mais comuns e é o campo onde se encontra o tratamento de água. De forma geral, com líquidos, pode-se falar em 4 tipos de membranas, dependendo do tipo de componentes a que são permeáveis. Esta separação está apresentada graficamente na imagem abaixo. Nota para quem queira ler o resto do texto, as explicações vão-se tornando algo técnicas, mesmo que eu tente deixá-las o mais simples possível.
Tipos de separação possíveis com cada tipo de membrana, baseados no tamanho dos componentes a separar.
Já acerca de membranas de outros tipos (separação de gases, usando electricidade ou outras), escreverei noutra altura.
Membranas para processos com líquidos
Microfiltração (MF) e ultrafiltração (UF): a fronteira entre as duas é algo difusa. Há quem coloque a fronteira nas membranas com poros de 100 nm. outros em 50 nm (eu prefiro usar este limite como o inferior da MF) e ainda quem use os 10 nm como fronteira. Em termos físicos, a fronteira depende mais do tipo de material a reter pela membrana. Na microfiltração falamos em partículas sólidas, em bactérias, virús ou até esporos. Falamos também em agregados moleculares muito grandes, isto é, em agregados de moléculas já de si grandes se juntam devido, por exemplo, a atracções electroestáticas. Na ultrafiltração, além de se reter os componentes acima citados, retêm-se ainda proteínas, polímeros grandes, peptídeos ou outras moléculas de tamanho acima de 1 kDa (1 kilodalton, aproximadamente 1.000 g/mol). Mais uma vez, esta fronteira não é fixa (moléculas mais baixas são retidas por nanofiltração), mas é mais consensual que a existente entre micro- e ultrafiltração.
Em tamanhos abaixo de 1 kDa entramos no campo da nanofiltração. Além de reterem moléculas deste tamanho, as membranas começam a já não ter poros visíveis, começam a ser densas. Isso significa que há outros fenómenos a ter em conta além do tamanho quando tentamos empurrar um composto através de uma membrana. Um deles é, no caso de moléculas com carga ou iões, o tipo de carga eléctrica. Em termos genéricos, uma membrana de nanofiltração tenderá a deixar passar iões monovalentes e irá reter iões multivalentes. Um exemplo são os iões de sódio ou cálcio, Na+ e Ca2+, respectivamente (mono- e bivalente). O ião Na+ necessita de um electrão para ficar neutro, o ião Ca2+ necessita de dois. Devido a esta diferença de cargas, o Na+ passa a membrana e o Ca2+ é retido. As membranas de nanofiltração são assim úteis para promover alguma separação do tipo de iões e tratar por exemplo águas com muitos metais pesados (cujos iões são multivalentes). Outros compostos que são retidos são outros compostos sem carga, especialmente orgânicos, com tamanhos mínimos por volta dos 200 Da (ou aproximadamente 200 g/mol).
Abaixo deste tamanho entramos nas membranas de osmose inversa. De forma simples, estas membranas retêm todos os iões, o que significa que são usadas para remover o sal da água e portanto úteis para produzir água doce a partir da água do mar. Para compreender o seu conceito, é necessário compreender a osmose (figuras abaixo). Num processo normal de osmose, dois compartimentos estão separados por uma membrana. Num compartimento temos água salgada, noutro água doce ou, pelo menos, com menor concentração de sal. O fenómeno natural da água é o de se "mover" através da membrana para tentar diluir o compartimento de água salgada até que a concentração de sal seja o mesmo dos dois lados. A diferença de concentração influi assim uma diferença da pressão intrínseca nos compartimentos. A esta pressão intrínseca, a qual é dependente da concentração e do tipo de sal, chamamos pressão osmótica (Nota: "sal" aqui é um termo químico e não apenas o sal de cozinha, cloreto de sódio. Bicarbonato de cálcio, por exemplo, é também um sal).
Na osmose inversa é preciso vencer esta pressão osmótica. Se a pressão osmótica for então de 10 atm (atmosferas, equivalente à pressão atmosférica) é necessário exercer pelo menos 11 atm para que a água passe do compartimento mais salgado para o compartimento com água doce. Naturalmente que à medida que a água sai, a concentração aumenta e a pressão osmótica também. É por isso aconselhável começar com uma pressão bastante maior que a pressão osmótica (por exemplo, 20 ou 30 atm).
Osmose regular
Osmose inversa
A pressão osmótica está presente em todas as aplicações de membranas com líquidos, mas só é verdadeiramente importante quando os sais são retidos, ou seja, na nanofiltração e osmose inversa. Em termos de pressão utilizada, a microfiltração usará pressões até cerca de 2 atm, a ultrafiltração até cerca de 5 a 8 atm, a nanofiltração está no campo das 10 às 40 atm. A osmose inversa usa pressões de 25 a 80 atm ou, em alguns casos, 100 atm. Quando falo em pressões, refiro-me à diferença de pressão entre os dois lados da membrana. Para a membrana não faz necessariamente diferença "ver" 1 atm ou 100 atm, desde que a diferença de pressão entre os dois lados não seja mais do que aquilo que pode suportar. Para se ter uma ideia da pressão em causa, os pneus de um Renault Clio requerem cerca de 2 atm de pressão (acima da pressão atmosférica). Uma carrinha Mercedes Sprinter necessitaria de ter pneus com 4,5 atm. Um processo de osmose inversa rebentaria com esses pneus com enorme facilidade. Outra forma de ver a pressão é a seguinte: a pressão de um processo típico de osmose inversa necessita de usar uma pressão (80 atm) semelhante à que se sentiria a 800 metros de profundidade (os submarinos norte-americanos descem normalmente até cerca de 480 m e no máximo até cerca de 750 m).
Resumindo: para se tratar uma água muito suja, poder-se-ia usar uma membrana de microfiltração para remover sólidos (lamas) a 1 atm, uma de ultrafiltração para a seguir remover bactérias e virús a 3 atm, uma de nanofiltração para remover metais pesados a 15 atm e uma de osmose inversa para remover todos os outros sais a 50 atm. É possível saltar etapas (a água do mar é normalmente passada por ultrafiltração antes da osmose inversa quando é dessalinizada), mas fazê-lo pode tornar a filtração mais difícil devido aos outros contaminantes.
Aplicações
Além da produção de água potável, água pura (para processos que a requeiram) ou de tratamento de águas residuais, as membranas em processos com líquidos são usadas para purificação de componentes em processos químicos, bioquímicos, farmacêuticos, alimentares, etc. São usadas para concentração de componentes específicos, para a clarificação de líquidos (vinho, cerveja, caldos de fermentação), na desalcoolização de bebidas (outros tipos de membranas são também usadas, mas falarei noutra altura), na diálise (e hemodiálise), etc.
Caso especial: Diálise
O caso da diálise merece ser referido, no entanto. A razão para isso é o facto de se basear no uso de membranas e ser um processo com líquidos mas não estar referido acima.
Na realidade, as membranas de diálise são habitualmente membranas de ultrafiltração mas usadas de forma algo distinta das demais. Enquanto em todos os casos acima todas as membranas necessitam de pressão para fazer passar água de um lado para o outro da membrana (tal como outros componentes), na diálise não se usa pressão mas antes um gradiente de concentração. Um gradiente de concentração refere-se à diferença de concentração entre dois pontos. No entanto, em vez de se referir à diferença directa, o gradiente faz referência à forma como a concentração muda (sobe ou desce) ao longo da distância entre os dois pontos.
No caso das membranas de hemodiálise, o conceito é o de colocar o sangue a circular de um lado da membrana e uma solução aquosa com a mesma concentração de sais que o sangue do outro lado. Isto serve para que a água na solução ou no sangue não "queira trocar de lado". Como a membrana tem poros demasiado pequenos para as células passarem e os sais estão igualmente "representados" em ambas as soluções, apenas as toxinas terão a tendência para passar a membrana. Escolhendo o tamanho das toxinas e colocando mais que um tamanho de poros, é possível controlar a sua remoção.
O mesmo princípio pode ser usado para remover outros componentes, mesmo que não se trate de sangue. Nestes casos falamos natural e simplesmente de diálise, sem necessidade do prefixo "hemo". Esses processos são usados para purificação de componentes (são muito usados na indústria farmacêutica) ou pare recuperação de produtos presentes em resíduos (indústria química, por exemplo).
Bioreactores de membranas
Este é um caso muito específico de membranas. O mais comum é aquele onde estas membranas são usadas para a purificação de água. Em geral, as águas residuais passam por vários tipos de tratamento, entre eles um de lamas (ou lodos) activas. Neste conceito a água é misturada com uma população bacterial capaz de remover alguns componentes poluentes, como nitratos, fosfatos ou outros. Para se poder reutilizar a água (ou descarregar num rio ou lago), estes lodos têm que ser separados da água. Isso pode ser feito a jusante com um sistema de membranas (habitualmente de ultrafiltração, para evitar a passagem de componentes orgânicos maiores ou de virús) ou em alternativa pode ser feito com membranas submersas no tanque de lodo activo.
Neste caso usamos também pressão para promover a passagem de água, mas isso é feito pelo lado da água purificada, usando vácuo. Isso significa que a pressão é baixa, o que é importante para evitar que as bactérias sejam "empurradas" para a membrana e bloqueiem os poros (quanto maior a pressão mais provável é que isto suceda). Este sistema habitualmente reduz o consumo de energia e reduz a área total de instalação, reduzindo os custos.
De forma análoga, é possível construir sistemas biológicos onde um determinado componente seja produzido de forma contínua por micro-organismos e onde membranas estejam submersas e sejam usadas para ir removendo uma solução contendo esse componente e impossibilitando a passagem dos micro-organismos. Esta alternativa é por vezes mais cara que fazer a separação após a produção do componente desejado, mas permite muitas vezes uma eficiência maior da produção do bioreactor, sendo o seu uso uma questão de considerar os vários custos.
Outras técnicas para líquidos
A lista acima não é nem pretende ser exaustiva, claro. Direcciona-se essencialmente para as principais aplicações, aquelas de maior volume e mais comuns. Muitas outras, algumas mais exóticas outras simplesmente ainda emergentes, poderiam ser nomeadas. Algumas delas: osmose (ou osmose forçada, "forward osmosis" em inglês, para concentração de produtos e produção de água potável); distilação por membranas ("membrane distillation", idem); electrodiálise ("electrodialysis", semelhante à diálise mas com campos eléctricos em vez de gradientes de concentração, para purificação de líquidos); pervaporação ("pervaporation", híbrido de líquidos e gases, para remoao de componentes a partir de líquidos); "contactores" de membranas (tradução livre do inglês "membrane contactors", para separação de componentes específicos - a diálise é um exemplo); membranas de adsorção ("membrane adsorbers", para captura específica de certos componentes de acordo com as suas propriedades físico-químicas ou afinidade biológica); etc.
Como se depreende, eu teria muitas outras aplicações que poderiam ser descritas. Prefiro não o fazer para não aborrecer ainda mais qualquer leitor/a que aqui tenha chegado. Para o próximo capítulo entrarei na parte dos materiais e a agulha mudará novamente...
Foi há já muito tempo que publiquei o primeiro post. Agora, finalmente tive o tempo, a disponibilidade e a motivação para completar o segundo post. Apenas posso desejar que o próximo não dure tanto tempo.