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Delito de Opinião

O Manifesto

José Meireles Graça, 04.05.24

O Manifesto por uma reforma da Justiça é assinado por 50 personalidades conhecidas. A maior parte, suspeito, assina-o por más razões, isto é, por um instinto gregário de defesa do aquário em que sempre se moveram, o dos poderes grandes e pequenos, do Estado intrometido hiper-regulador e paternalista, das empresas públicas e das protegidas, das portas giratórias, da dança das cadeiras e j’en passe – tudo isso é sabido.

Dizia uma amiga no Facebook: “Não sei se será sentido de humor mas não acho muita graça que 50 pessoas com responsabilidades na condução dos negócios políticos deste país venham agora queixar-se do estado em que está a Justiça, a propósito do Ministério Público ter metido água quanto a uma acusação ao Primeiro Ministro”.

(Nota lateral: O MP não “meteu água”, continua a meter porque desde o famigerado comunicado da senhora PGR de Novembro do ano passado em que esta viola com serena inconsciência o segredo de Justiça o tal PM não foi citado para nada, nem ouvido. Como se fosse natural desencadear um terramoto com a declaração, o tribunal vir declarar que afinal o terramoto era apenas um ventinho porque o epicentro estava na Lua, mas mesmo assim as vítimas do pânico não poderem sossegar nem prosseguir com as suas vidas).

Aquilo disse a minha amiga, que é de uma esquerda desalinhada, os reformados no meu café dizem muito pior: políticos é tudo farinha do mesmo saco, quem está lá é para se encher, onde há fumo há fogo.

Outros amigos mais da minha criação, que navegam no mar da superioridade intelectual ancorada à direita, rejubilam: é preciso expor os malefícios que o estatismo e os seus principais patronos (o PSD e o PS, este mais porque faz muito tempo que vive amarrado à manjedoura e é mais radical e inepto) causam à economia, e relacionar isso com a impostagem predatória e a falta de crescimento.

Quem está na berlinda da exposição à execração pública é o PS porque é sobretudo com ele (e só podia ser, salvo na Madeira e nas autarquias) que há casos e casinhos. Daí que as oposições tendam a transformar este conjunto de coisas numa guerra de maus contra os bons, os primeiros devendo ser desapossados dos seus lugares pelos segundos, que têm providencialmente um par de asas nas costas.

O campeão desta estratégia é fatalmente o Chega, que já veio tachar o Manifesto como "uma vergonha para o povo português". “Quem estiver lá fora não vai ver outra coisa senão os políticos a legislarem em seu próprio benefício", disse com virtuosa indignação.

É provável que tenha razão na análise da reacção popular, que isso lhe traga benefícios e que quem queira reformar a Justiça tropece na incompreensão e nos processos de intenção.

Porém, que dois governos, um nacional e outro regional, já tenham caído por acusações do MP que não se aguentam em tribunal (e são, até, ridicularizadas, como no caso Influencer), a coroar um longo percurso de incompetência e abusos sortidos, excede em muito os limites do tolerável; e que o poder político tenha acordado do longo sono que permitiu que se chegasse a este estado de coisas, e só agora por precisamente ter as barbas de molho, é um caso claro de Deus a escrever direito por linhas tortas.

Dir-se-á que o dinheiro vivo encontrado num gabinete de um adjunto já era suficiente para Costa ser frito em lume brando e que, sem buscas, jamais se teria descoberto a provável moscambilha. Pois sim. Mas também aí, até agora, provou-se nada, nem se provará nunca uma conexão ilícita com o antigo PM. A palpites e suspeitas todos têm direito, incluindo os reformados acima referidos, eu e os restantes eleitores. Mas não os magistrados do Ministério Público, a menos que o Direito Criminal, de que deveriam ser especialistas, devesse ser retrogradado até aos tempos do senhor Marquês de Pombal ou mais para trás.

Quando André Ventura fala, a este propósito, do povo, não é do povo que está a falar, mas da populaça; não há nenhuma categoria de cidadãos que esteja exornada de qualidades de pureza de propósitos e processos que cruelmente falham a outras categorias, e isto também vale para magistrados; os poderes públicos equilibram-se para evitar abusos e não há equilíbrio se um deles está pulverizado numa multidão de pequenos títeres ungidos de uma missão salvífica que um deus desconhecido lhes atribuiu, completa com a garantia da impunidade e irresponsabilidade que, num Estado de Direito, pertence e tem de pertencer a quem julga, mas não a quem acusa; e democracia representativa não é a mesma coisa que democracia directa, o que significa que nem sempre a popularidade é o melhor dos critérios.

Finalmente, a pergunta retórica que todos fazem nestes entretantos, isto é, por que razão os que mandam haveriam de estar acima, face à lei, dos mandados, só pode ter uma resposta: não estão nem têm de estar. Mas a forma como são tratados é o espelho da forma como se tratam os que ninguém conhece, e que por isso não são defendidos por manifestos de personalidades nem por ninguém, salvo por advogados se tiverem recursos para lhes pagar.

E esse espelho é o da casa dos terrores. Quando chegarmos, se chegarmos, à fase das reformas, hei-de discordar de muita coisa, e o caminho comporta o perigo de substituir um desequilíbrio por outro na balança de poderes. Mas hoje por hoje este Manifesto, que é na realidade um libelo, também o assinaria. Apesar das companhias.

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