O livro que não nos deixa mentir
Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Gonçalves em 1975
A História é feita de grandes e pequenos homens. E também é feita de pequenas e grandes frases. Do "Alea jacta est", de Júlio César, ao "Nunca nos renderemos", de Churchill. Sem esquecer o incentivo que em 1640 D. Luísa de Gusmão terá deixado ao marido, o futuro D. João IV, para se unir aos conjurados: “Melhor morrer reinando do que viver servindo.”
Este livro traz-nos uma sugestiva panorâmica da história recente de Portugal, condensada em cerca de 1500 frases proferidas por protagonistas vários desde 1973 até ao final do ano passado. O título diz logo ao que vem: são “43 anos e seis meses de má política”.
É um título controverso, reconheça-se. Porque no fundo aqui nem tudo é mau. E a todo o momento somos confrontados com este paradoxo: temos excelentes frases de péssimos políticos e medíocres declarações de políticos que se notabilizaram por serem mais aptos a mostrar obra do que a falar.
Por opção editorial, o livro começa por recolher declarações registadas nos últimos meses do chamado Estado Novo, em 1973. Foi uma decisão acertada, para que se perceba bem como ao longo dos últimos 43 anos tivemos três países muito diferentes, com reflexos inevitáveis no discurso político.
Refiro-me ao país da ditadura, ao país da revolução e ao país da chamada “normalidade democrática”. Que é – felizmente – aquele em que vivemos agora.
O país mais antigo era o da censura oficial e o da supressão das liberdades.
Um país repleto de retórica balofa e vazia, muito adjectivada, cheia de gongorismos e salamaleques.
Um país com um chefe do Governo que chamava “conversa” ao monólogo.
Um país com um Presidente da República que no discurso do Ano Novo de 1974 declarou o seguinte: “Com o galopar incessante do tempo, vai encurtando a distância que separa a Humanidade do século XXI, vai ficando cada vez mais distanciado o século XIX e vão sucessivamente desaparecendo da vida aqueles que nele nasceram.”
La Palice não diria melhor…
Seguiu-se o país da erupção da liberdade logo ameaçada pelos delírios revolucionários com a sua linguagem de recorte bélico, cheia de verbos como “lutar”, “esmagar” e até “matar”. Este é um período interessantíssimo – para mim o mais fascinante de toda a obra, e não por acaso preenchendo quase um terço do livro.
Um período que exigiu certamente do organizador, Luís Naves, uma exaustiva investigação para apurar com exactidão e rigor quem disse o quê, à margem do boato que com o passar dos anos tantas vezes se torna lenda.
E, sim, é verdade que Otelo Saraiva de Carvalho disse mesmo que talvez tivesse sido melhor “encostar à parede ou mandar para o Campo Pequeno umas centenas ou uns milhares de contra-revolucionários, eliminando-os à nascença”.
Este Robespierre de trazer por casa, quando afirmou isto em Junho de 1975, era o chefe da mais poderosa força armada em Portugal. Por sinal o mesmo Otelo que em Abril de 2011, tendo o frenesim extremista já só como recordação, declarou alto e bom som: “Se soubesse como o País ia ficar, não fazia a revolução.”
Eram tempos irrepetíveis.
Tempos em que a Intersindical – com o Partido Comunista no Governo – espalhava a palavra de ordem “Não à greve pela greve”.
Tempos em que o futuro secretário-geral do PCP, Carlos Carvalhas, então secretário de Estado do Trabalho, considerava “verdadeiramente revolucionário” que os portugueses trabalhassem no feriado do 10 de Junho.
Tempos em que o primeiro-ministro pró-comunista Vasco Gonçalves anunciava a intenção de mandar “uma quantidade de gente para um campo de trabalho”.
Não tenho a menor dúvida: este livro será a partir de agora um precioso auxiliar para quem escreve nos jornais, para quem fala nas televisões e nas rádios. Jornalistas, comentadores e decisores políticos, por exemplo, passarão a tê-lo à cabeceira ou na secretária de trabalho.
Andamos bem carecidos de obras como esta, que nos estimulem e revigorem a memória nestes dias da “pós-verdade”, onde milhares de pseudo-sábios garantem não existir qualquer diferença entre facto e treta.
43 Anos e 6 Meses de Má Política é neste aspecto – e muito bem – um livro que rema contra a corrente. Porque se ancora no facto e despreza a treta. Uma triagem que só se tornou possível graças ao olhar atento de um jornalista experiente, habituado a separar as águas, destacando aquilo que realmente se disse ou se escreveu sem dar guarida a mitos, por mais plausíveis que parecessem.
Um exemplo: a célebre frase “Nunca me engano e raramente tenho dúvidas”, atribuída há décadas a Cavaco Silva, afinal é de autor anónimo. Não há registo de que alguma vez Cavaco a tenha proferido.
Mas muitas outras aqui desfilam, devidamente comprovadas. Lembrarei algumas, que acabaram por integrar-se na linguagem comum, muito para lá do contexto em que nasceram. "Olhe que não, olhe que não", disse Álvaro Cunhal em 1975. "É só fumaça, o povo é sereno", bradou no mesmo ano Pinheiro de Azevedo, autor de outra frase que tem sido muito citada nas últimas semanas e que talvez por uma questão de decoro não vem incluída nesta antologia.
Esta obra não esquece a “luz ao fundo do túnel” invocada por Mário Soares em 1978 quando solicitou ao FMI o primeiro auxílio de emergência financeira da democracia portuguesa. Nem a necessidade de "apertar o cinto", mencionada também por Soares, em 1984, quando o País estava novamente sob assistência externa. Nem o desbragado optimismo do ministro Braga de Macedo, ministro das Finanças de Cavaco, quando em 1992 anunciou que "Portugal é um oásis". Ou a platónica garantia dada em inglês pelo recém-empossado primeiro-ministro António Guterres em 1995: "No jobs for the boys." E o que dizer do optimismo socrático do ministro Manuel Pinho ao proclamar urbi et orbi em Outubro de 2006: "A crise acabou"?
Uma segunda edição permitirá certamente colmatar algumas lacunas – poucas – que registei numa leitura atenta.
"Soares é fixe", que serviu de lema central à vitoriosa campanha presidencial de 1986.
"Esse é um assunto tabu", frase de Cavaco proferida em Outubro de 1994, deixando em aberto o seu futuro como líder do PSD e chefe do Governo. O tabu só seria desfeito só na Primavera seguinte.
Ou a deliciosa rendição de Manuela Ferreira Leite ao diktat de Bruxelas e Berlim: “Quem manda é quem paga.” Isto em Novembro de 2010, quando liderava o PSD e ainda não subscrevia abaixo-assinados para a renegociação da nossa dívida externa, de braço dado com Francisco Louçã.
O autor merece parabéns pela quantidade e qualidade do trabalho produzido. Muito mais do que um copioso registo de frases, estamos perante um precioso documento que nos ajuda a perceber melhor quem ao longo de vários ciclos políticos honrou a palavra dada e quem andou a vender gato por lebre.
E por falar em previsões, aqui destaco três, igualmente incluídas nestes 43 Anos e 6 Meses de Má Política:
"Vou liderar o PSD nos próximos dez anos", declarou Durão Barroso em Agosto de 1999. Como sabemos, não aguentou sequer metade desse tempo: em Junho de 2002 despediu-se apressadamente da pátria, rumando à presidência da Comissão Europeia sem olhar para trás.
"A minha maior ambição política é não ter ambição nenhuma", assegurou em Outubro de 2003 o actual Presidente da República. Caso para questionarmos onde estaria neste momento o Chefe do Estado se alimentasse alguma ambição…
"Portugal não necessita de nenhuma assistência financeira", afiançou em Janeiro de 2011 o primeiro-ministro José Sócrates. Três meses antes de fazer um apelo quase desesperado às instituições financeiras internacionais para salvarem as nossas contas públicas.
Vistas à distância, já quase extinto o calor da polémica, frases como estas ganham um importante carácter documental: deixam de mobilizar o jornalista, passam a interpelar o historiador.
Desde logo porque de previsões falhadas também reza a história. Aqui estão elas, plasmadas neste livro que não nos deixa mentir.
Texto que, com pequenas alterações, li ontem na sessão de apresentação do livro, em Lisboa.