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Delito de Opinião

O livro

José Meireles Graça, 11.04.24

O assunto da semana é o livro que quase ninguém (ainda) leu. Mas o assunto da semana não é o livro, porquanto a esmagadora maioria das pessoas está com Pessoa: Livros são papéis pintados com tinta/Estudar é uma coisa em que está indistinta/A distinção entre nada e coisa nenhuma, de modo que, mesmo com o redemoinho opinativo, não se antevê um êxito editorial; e, em que pese à seriedade do assunto (vertido logo no título Identidade e Família – Entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade) é pouco provável que a obra provocasse comoções se fosse apresentada por qualquer dos coordenadores, ou um dos 22 autores dos ensaios recolhidos.

Mas foi apresentada por Passos Coelho e como nos assuntos de que trata veicula pontos de vista que revelam, no mínimo, preocupação com a forma como a importação de mundividências de esquerda (como a famosa ideologia de género, por exemplo) têm vindo a influenciar a opinião e a legislação em matérias como a família, o papel da mulher, a educação pública, a sexualidade – em suma, com engenharias sociais ditas progressistas – caiu o Carmo e a Trindade.

Juntou-se aqui a fome com a vontade de comer: Não só Passos ganhou a reputação de ser, mais do que Ventura, o Némesis da esquerda, como nestes assuntos o fio condutor dos ensaios parece ser o catolicismo para todos e a situação à direita no espectro político para a maior parte. Duas abominações, está bom de ver.

No livro há autores que conheço e respeito mas dos quais discordo em pontos essenciais, outros dos quais discordo em pontos menores e outros que não conheço. Não é de todo uma obra em que todos digam as mesmas coisas nem exactamente pelos mesmos ângulos.

Todos têm porém um ponto comum – desafinam do coro triunfal de rejeição das concepções da maior parte das pessoas comuns nestas matérias e de qualquer tradição. E isso não se lhes pode perdoar porque do que estamos a falar quase sempre é de “conquistas” da esquerda. Esta sempre que está no poder faz “avanços” e os avanços não se podem reverter porque, lá está, as reversões são recuos em direcção às trevas que prestimosamente o PCP e o Bloco, esses faróis da democracia, e o PS, esse gestor do capitalismo de rosto humano ou lá o que é, iluminaram. Uma versão qualquer da direita que ocupe o poder pode suspender a marcha para o ideal de uma sociedade sem categorias de cidadãos que possam ser identificadas como oprimidas, nem crianças cuja educação possa ser influenciada pelos pais mais do que pelo Estado, nem cidadãos com diferenças de fortuna ou rendimento assinaláveis. Mas não pode fazer mais do que isso – suspender. Porque quando, em nome da alternância, a esquerda regresse, apenas tem de prosseguir o seu glorioso caminho no ponto em que o deixou porque verdadeiramente só ela detém as chaves do Progresso, do Bem e outros entusiasmantes desígnios adequadamente maiusculizados.

É neste ponto que radica o escândalo: lá que uns senhores respeitáveis com muito ou algum crédito intelectual se reúnam para abundar em opiniões reaccionárias e retrógradas é uma coisa; que o fruto das suas cogitações seja apresentado por um político que toda a direita respeita e que tem potencial para vir a desempenhar um relevante papel é outra.

É que ensaios, livros e artigos de opinião desalinhados da maré woke podem ser soterrados pela imensa produção dos dez mil ensaístas, escritores, jornalistas e comentadores de esquerda; mas se vierem acompanhados com a ameaça realista de poderem vir a ser postos em prática então o caso muda de figura.

Passos Coelho, na sua extensa apresentação, falou quase sempre apenas do livro e dos seus temas mas a comunicação social respigou uma ou outra frase, frequentemente descontextualizada, para fazer passar a ideia de haver ali um obscuro conluio objectivo com André Ventura, que estava na assistência.

Acho que a comunicação social, por ínvios caminhos, detectou bem o problema: a tese de que a direita ganhou mas há três blocos (a esquerda, a AD e o Chega) é o trambolho permanente com que, hoje a propósito disto e amanhã a propósito de outra coisa qualquer, vamos viver.

Sucede que as pessoas que, como eu, votaram na AD e desejam o seu sucesso não têm por isso de fechar a matraca das suas opiniões e absterem-se de dizer esta coisa simples: o diálogo preferencial é, na ordem natural das coisas porque foi a direita que ganhou as eleições, com o Chega. Equilíbrio é o outro nome da tibieza e esta, para quem souber ler os sinais do tempo, é a antecâmara da derrota.

A família da direita está desavinda? Está, acontece muito nas famílias e nem por isso estas deixam de ser os melhores lugares para crescer, tese que decerto todos os autores subscrevem.

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