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Delito de Opinião

O imposto sobre os pobres

Paulo Sousa, 07.02.21

Para uma imensidão de portugueses a maior probabilidade de enriquecer, e assim de mudar de vida, passa pelos números da lotaria. Por isso podemos dizer que não é muito provável que alguma vez deixem de ser pobres.

Nem todos os jogos têm a mesma probabilidade de acertar na chave certa mas em qualquer um deles as hipóteses de vencer são tão reduzidas que toda a dinâmica se resume em pagar para poder sonhar.

É voz corrente que em Portugal se fazem os maiores volumes de apostas per capita de toda a Europa. Procurei dados sobre isso e encontrei apenas uma relação dos cinco maiores prémios pagos até hoje pelo Euro-Milhões, em cada um dos países que fazem parte desta lotaria europeia. Saltou-me à vista que, considerando esses cinco maiores prémios, em Portugal foram distribuídos 63€ per capita, enquanto que na Áustria esse valor não ultrapassou os 28€. Como não nos podemos considerar três vezes mais sortudos que os austríacos, julgo que isto é explicado por apostarmos três vezes mais do que eles, o que diz um pouco sobre a diferença das nossas expectativas de vida.

A dependência que este tipo de jogos provoca está estudada e comprovada. À distância poderá ser apenas mais uma estatística sobre uma adição, mas quando falamos dos jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) falamos de apostadores pobres, e nas terras pequenas esse fenómeno tem nomes e rostos. Não são casos raros em que até os donos dos cafés se entusiasmam com o produto estrela da SCML, que são as Raspadinhas, e depois de começarem à procura de um prémio que lhes pague o prejuízo anterior, acabam por perder a licença por incumprimento na entrega dos valores “cobrados”.

Aposto que será nos bairros mais pobres que os balcões de apostas angariam proporcionalmente mais receitas.

Nas povoações que têm mais do que um café, aquele que tem a máquina da Santa Casa está sempre em vantagem. A máquina de apostas até pode motivar a hipótese de trespasse de um estabelecimento desta natureza. Além da receita do jogo (7% do valor das apostas, segundo soube) esse é sempre o local onde se vende mais café, cigarros e bagaço.

Os jogos da Santa Casa são um negócio de milhares de milhões de euros. As receitas brutas da SCML ascenderam em 2019 a 3.360 milhões de euros. Ando a ganhar o hábito de converter os grandes valores da nossa economia em SMN, e assim essa receita equivalerá a mais de 5 milhões de SMN. Nada mau.

Podemos dizer que estes jogos canalizam recursos de todo o país para os cofres de uma das muitas Santas Casas da Misericórdia, neste caso para a de Lisboa. É como se fosse um imposto pago pelos pobres de todo o país e que é gasto em Lisboa.

Claro que os responsáveis da SCML entrarão logo em defesa do seu ganha-pão e dirão que deste valor cerca de 1.000 milhões de euros (aprox. 1,6 milhões de SMN) são transferidos para os beneficiários sociais da SCML, entre os quais encontramos o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ministério da Saúde e Ministério da Educação, dando razão à ideia do imposto.

Em pleno confinamento pandémico os cafés estão impedidos de vender bicas, ou cimbalinos conforme a região. Nem cafés, nem bares podem agora vender os seus produtos “ao postigo”. Até o Elefante Branco se queixa desta medida destruidora da economia.

Aqui na minha terra o café, onde já há uns anos deixou de se poder fumar, deixou agora também de poder tirar cafés. Mas como tem uma máquina da SCML, esticaram duas fitas plásticas vermelhas e brancas para, qual curro, assinalar o caminho mais curto das moedas dos bolsos do pobres até à gorda conta da SCML. Para que dúvidas não haja, a santidade está-lhe intrínseca no nome. É como a publicidade subliminar, nem damos por ela, levamos com o produto, com a embalagem e com o recado, tudo junto antes de ter tempo de respirar. E santa que é, consegue sem pestanejar, apelar à nossa ajuda para poder ajudar a dar uma resposta extraordinária à pandemia. Fiquei curioso e após vasculhar no site da dita, acabei por encontrar um link que nos leva ao respectivo relatório e contas (https://www.scml.pt/sobre-nos/relatorios-e-contas/), mas afinal não leva. Diz que é o erro 404, seja lá o que isso for. Mas, como quem dá uma resposta extraordinária à pandemia, quase como quem nos abraça, conforta-nos dizendo “Todos nós perdemos o rumo de vez em quando. A Santa Casa ajuda-o a encontrar o caminho” e, preocupada, encaminha-nos de volta à página principal.

Provavelmente durante um dos seus drinks de fim de tarde a Ministra da Cultura lembrou-se de criar mais um imposto especial sobre os pobres, para angariar receitas que serão canalizadas – e esse é o nobre destino das receitas, serem canalizadas – para ajudar a responder a “necessidades de intervenção de salvaguarda e investimento” em património classificado ou em vias de classificação. Diz que tem o objectivo de “envolver todos” e arranca já em Maio.

Quem nunca teve uma epifania depois de beber uns copos que atire a primeira pedra.

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