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Delito de Opinião

O imperador empalhado (episódio da História do Fracasso)

Luís Naves, 01.11.14

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O poder é demasiado transitório e há muitos exemplos de homens poderosos que quase chegaram aos píncaros da glória, perdendo tudo num único momento em que a sorte conspirou contra eles. Estes casos deviam ensinar que todos os projectos políticos contêm a semente do seu eventual fracasso e que a ambição tem um lado ilusório e, normalmente, uma relação próxima com a futilidade.

Na lista dos grandes fracassos onde os protagonistas eram os homens mais poderosos do seu tempo brilham os nomes de dois romanos, Marco Licínio Crasso e Públio Licínio Valeriano, separados um do outro por cerca de três séculos, o primeiro associado ao auge do poder de Roma e o segundo ao início do suave declínio desta civilização. Os exércitos romanos tiveram frequentes colisões com os persas, em torno do controlo do Médio Oriente, nomeadamente dos territórios da Síria e da Mesopotâmia que coincidem com a zona hoje contestada pelo autodenominado Estado Islâmico (curiosamente, os descendentes dos romanos, os ocidentais, e os descendentes dos persas, os iranianos, estão do mesmo lado no combate aos terroristas do autodenominado Estado Islâmico, que ninguém reconhece).

Os antigos persas eram difíceis de bater no seu terreno, como aprenderia Crasso, cuja cabeça cortada serviu de adereço teatral, e como aprendeu, três séculos mais tarde, o imperador Valeriano, cuja aventura acabou de forma ainda mais humilhante, na vergonha do cativeiro e, depois da morte, com o corpo empalhado e transformado em troféu de parede.

 

Comecemos por Marco Licínio Crasso. Em 53 a. C. ocorreu um dos episódios mais traumáticos da história romana, quando um exército comandado por este milionário e político, então o homem-forte de Roma, foi esmagado na batalha de Carras pelas forças do império Arsácida ou Império Parta. Este episódio teve grande impacto no seu tempo e deu origem a lendas que excitaram a imaginação das gerações seguintes, por exemplo, a da legião perdida, segundo a qual muitos prisioneiros de Carras foram utilizados nos confins das fronteiras do império captor. Não há provas concludentes de sobreviventes para além da escravatura, mas a genética e a arqueologia encontraram nos confins da China rastos que apontam para a possibilidade de ter sido usada em combate pelos persas uma legião de soldados romanos capturados.

Crasso, o general vencido, era um homem riquíssimo, movido pela avareza e a inveja, mas destruiu numa única campanha, através de uma série de erros catastróficos, tudo aquilo que acumulara ao longo de uma vida cuidadosa e calculista. O seu colega no primeiro triunvirato, Júlio César, devia-lhe uma fortuna, mas tanto César como Pompeu (o outro triúnviro) tinham a seu crédito vitórias militares importantes, enquanto Crasso apenas sufocara rebeliões, nomeadamente a perigosa insurreição de escravos liderada pelo gladiador Espártaco. Essa vitória brutal não lhe trouxera glória suficiente, por isso Crasso tentou submeter os Arsácidas, certamente para aumentar a sua riqueza.

Segundo o autor clássico Plutarco, Crasso acumulara uma vasta riqueza “à custa do fogo e do sangue, fazendo das calamidades públicas a sua maior fonte de renda” (1). O milionário era um bajulador e avarento, que soube aproveitar os leilões de propriedades de gente que caíra em desgraça durante a guerra civil na república, mas também a falta de escrúpulos que mostrou ao especializar-se na compra, por valores ridículos, de prédios contíguos a propriedades romanas que ardiam ou que estivessem à beira da ruína. A ambição de Crasso não podia ser contida. Embora já tivesse 62 anos, faltava-lhe um triunfo militar. A estabilização da fronteira oriental da república romana servia os seus interesses, pelo que reuniu um imponente exército de 40 mil homens, com sete legiões. A campanha no norte da actual Síria era extremamente complexa, devido às distâncias e ao terreno inóspito ou até desértico, que os romanos conheciam mal. Os Arsácidas utilizaram tácticas de guerrilha para cansar os romanos e esmagaram o exército invasor numa batalha de enormes dimensões onde as vantagens habituais do combate colectivo das legiões não puderam ser utilizadas.

A expressão “erro crasso”, que significa “erro grosseiro”, associou-se nos últimos séculos à tragédia deste milionário romano. Segundo o relato de Plutarco, a sua cabeça foi usada como adereço numa peça de teatro dada em honra do rei Orodes II. Carras foi um daqueles momentos da História cheios de interrogações. E se Crasso não tivesse atacado os persas? É bem possível que Júlio César não tivesse chegado ao poder ou que isso tivesse acontecido de forma mais rápida, sem a necessidade da guerra civil que o opôs a Pompeu. O filho mais novo de Crasso, Publius, que também morreu na expedição, teria possibilidade de seguir uma carreira política de destaque. Publius era amigo de César e o seu irmão sobrevivente foi um fiel companheiro do futuro ditador romano. Se tivesse triunfado, Crasso teria enorme influência naqueles anos decisivos entre a República e o império. Assim, foi o responsável pela maior derrota militar de Roma e tornou-se no mais famoso de uma longa lista de romanos poderosos que conheceram a derrota nas distantes fronteiras orientais.

Apesar de tudo, a sua humilhação ritual e lendária pode considerar-se relativamente suave em comparação à que sofreria um líder romano que viveu mais de 300 anos depois. Devido provavelmente a excesso de confiança, o imperador Valeriano foi capturado em 260 d. C. pelos persas do Império Sassânida (que sucedeu à dinastia Arsácida). Este episódio ocorreu na batalha de Edessa, agora no sul da Turquia. Os romanos perderam muitos homens numa peste e ficaram em dificuldades, sem capacidade para proceder a uma retirada estratégica. Quando tentou negociar uma saída política com o líder persa, Sapor I, o imperador terá sido atraiçoado em circunstâncias não muito claras, tendo sido feito prisioneiro. Valeriano foi o único imperador romano jamais capturado vivo em batalha, mas não sobreviveu muito tempo ao cativeiro. As crónicas afirmam que o seu corpo foi esfolado e a pele preservada, de forma a que o cadáver empalhado era exibido em público pelos captores, como esplendoroso troféu de parede.

No seu clássico Declínio e Queda do Império Romano, Edward Gibbon conta o que aconteceu ao infeliz imperador: “Diz-se que Valeriano, acorrentado, mas revestido da púrpura imperial, foi exposto à multidão num demorado espectáculo de grandeza derrubada; e que, sempre que o monarca persa montava a cavalo, apoiava o pé no pescoço de um imperador romano. Apesar de todas as advertências dos aliados, que repetidamente o aconselhavam a ter presente as vicissitudes da sorte, a temer o regressado poder de Roma e a fazer do seu ilustre prisioneiro o penhor da paz e não um objecto de insulto, Sapor manteve-se inflexível. Quando Valeriano sucumbiu ao peso da vergonha e da dor, a sua pele, empalhada e conservando uma forma humana, foi guardada durante séculos no mais famoso templo da Pérsia”. No mesmo livro, Gibbon coloca em dúvida alguns aspectos da derrota de Valeriano, mas não o seu triste fim, sobre o qual há outras versões que incluem elementos pouco prováveis, por exemplo, a história de que Sapor terá morto Valeriano forçando-o a engolir ouro líquido.

A captura do imperador ainda vivo é incontroversa. Numa inscrição encontrada em 1936, como se fosse uma frase do próprio Sapor, afirma-se o seguinte: “Tomámos César Valeriano prisioneiro com as nossas próprias mãos, como os restantes comandantes do exército. Conquistámos 36 cidades e os seus territórios” (2). Outro imperador, Numeriano, foi morto em batalha contra os Sassânidas, 24 anos mais tarde (perto da actual Homs, na Síria) e o corpo serviu para fabricar um objecto de luxo. A pele terá sido preservada em mirra, embora não haja descrições minuciosas do artefacto que, ao contrário do caso de Valeriano, não teria forma humana.

As guerras com os antigos persas prolongaram-se no tempo. As do século III foram especialmente ferozes, como demonstram os relatos da época. Os Sassânidas foram mais eficazes do que os antecessores na utilização dos recursos da região e, nesta fase, não há lendas sobre legiões perdidas. Os milhares de prisioneiros romanos foram usados como mão-de-obra escrava na construção de obras de irrigação que aumentaram o poder dos persas na região e o seu controlo sobre os potentados locais. Para os romanos, “a ascensão de uma potência rival foi um profundo choque estratégico. Teve repercussões não apenas nas regiões da fronteira leste, mas em todo o império” (3). Isto sugere que a derrota de Valeriano, o imperador que acabou empalhado, foi um prego no caixão do império romano. A sensação de insegurança levou os romanos a reforçarem as suas forças militares. Manter um exército de grandes dimensões, que se calcula poderia ter 400 mil soldados, era um terrível fardo para um império que tinha recursos limitados. Além disso, as perdas eram pesadas e regulares, o que aumentava a insegurança, implicando novos gastos militares, que seriam desperdiçados na campanha seguinte. A decadência foi inevitável e as guerras constantes com os persas eram aquilo que se podia definir como um erro crasso.

(1) A Vida de Crasso, Plutarco

(2) The Fall of the Roman Empire, Peter Heather

(3) idem

 

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