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Delito de Opinião

O imaterialismo aplicado aos serviços públicos

João Campos, 24.06.19

“Não se pode deixar de dar nota que os atrasos também são o resultado de um fenómeno próprio e específico da procura que tem a ver com o facto de a generalidade dos cidadãos optar, sistematicamente, por se dirigir aos mesmos serviços, à mesma hora – antes da abertura do atendimento ao público”, explicou [Anabela Pedroso, Secretária de Estado da Justiça]. (via Observador)

A lógica é admirável: se os cidadãos não forem para as filas dos serviços públicos, não há filas nos serviços públicos. Dito de outro modo: os serviços públicos funcionam globalmente bem se não forem utilizados. É o princípio do SIRESP (o serviço de comunicações de emergência que funciona sempre bem desde que não haja emergências) aplicado às lojas do cidadão e às repartições de registo civil. Nem sei por que motivo há-de o Governo ficar por aqui. Aguardo que o Secretário de Estado das Infraestruturas diga que a culpa dos problemas dos transportes é dos utentes, que os utilizam; ou que o Secretário de Estado da Saúde venha a público defender que os problemas actuais do SNS não se devem às cativações ou à simples irresponsabilidade do Governo, mas sim aos utentes, que teimam em adoecer, em frequentar hospitais e, maçada das maçadas, em agendar cirurgias. Como se não tivessem nada melhor para fazer.

(como é bom de ver, a culpa da falta de obstetras durante o Verão nos hospitais de Lisboa, mas também nos de Beja e de Portimão - a província não faz muitas manchetes - não se deve a nenhuma falha do Ministério da Saúde, mas sim a todas as mulheres que, malvadas, ousaram engravidar algures entre Novembro e Dezembro do ano passado)

Daqui até à filosofia vai um passo de bebé, desde que o bebé nasça no Outono ou na Primavera: se um serviço público abrir e ninguém estiver lá para tratar de alguma coisa, ela faz algum som? Julgo que o exercício funcionava melhor com a árvore e a floresta, mas essas, enfim, arderam em 2017 (e, lá está: se não fosse as árvores...). Fiquemos então com as repartições públicas, exemplo de imaterialismo que julgo não ter ocorrido a Berkeley.

Mais admirável do que a lógica só mesmo o descaramento. Mas esse será tudo menos imaterial.

4 comentários

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    João André 24.06.2019

    Já agora, também demonstra o problema no trabalho em Portugal. Se eu tiver de tratar de algum assunto burocrático na Holanda (ou Alemanha), vou à câmara municipal e ou chego mais tarde ao trabalho ou saio mais cedo. Se trabalhar perto do local onde está a câmara, saio do trabalho para ir tratar dos meus assuntos. Mesmo que demore umas 2 ou 3 horas, ninguém me incomoda no trabalho. Assumem que o trabalho será feito na mesma.

    Claro, isto é mais fácil para um trabalho como o meu. Se fosse na produção seria mais difícil, mas mesmo aí é relativamente simples resolver. Fala-se com os chefes, procura-se uma solução e está resolvido.

    Os serviços públicos complicam as coisas, mas as empresas em Portugal suponho que também.
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    João Campos 24.06.2019

    João, as pessoas não vão fazer fila para as Laranjeiras às 06:30 para não perderem o dia de trabalho. Quem vai às 06:30 para as Laranjeiras sabe muito bem que, salvo algum milagre, tem o dia de trabalho perdido; continua a ir simplesmente para ficar com o assunto despachado nem que seja às 15:00, e não ter de perder outro dia.

    Falo por experiência - já o fiz várias vezes. Lembro-me de uma vez ter abalado às 06:30 para as Laranjeiras com o intuito de resolver uma questão na Segurança Social. Cheguei às 07:00, fiquei na fila, quando a loja do cidadão abriu às 08:30 calhou-me a senha número 133. Deu tempo para ir beber um café, ficar um pouco lá sentado a ler e a tentar aferir a velocidade do atendimento, sair, ir às compras, ir a uma clínica de radiologia fazer um raio-x, voltar a casa (vivia em Campo de Ourique), cozinhar o almoço, almoçar, arrumar a cozinha, dar uns toques num videojogo e regressar por volta das 15:00 - para ter ainda 30 pessoas à minha frente.

    E isto, note-se, foi muito antes de a comunicação social ter descoberto que a malta vai de madrugada para a porta das lojas do cidadão, das conservatórias ou do campus da justiça. Ao contrário do que possa parecer, isto não começou com este Governo - simplesmente nenhum outro governante teve a lata de proferir uma alarvidade deste calibre.

    Enfim, a malta aprende uns truques. Eu nunca vou para uma repartição pública sem um ou dois livros e o telemóvel bem carregado. Há três coisas que me ajudam sempre a colocar as leituras em dia: praia, viagens de comboio, e idas à loja do cidadão. Já não se perde tudo.
  • https://youtu.be/GZwpeE3Lw5c
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