O imaterialismo aplicado aos serviços públicos
A lógica é admirável: se os cidadãos não forem para as filas dos serviços públicos, não há filas nos serviços públicos. Dito de outro modo: os serviços públicos funcionam globalmente bem se não forem utilizados. É o princípio do SIRESP (o serviço de comunicações de emergência que funciona sempre bem desde que não haja emergências) aplicado às lojas do cidadão e às repartições de registo civil. Nem sei por que motivo há-de o Governo ficar por aqui. Aguardo que o Secretário de Estado das Infraestruturas diga que a culpa dos problemas dos transportes é dos utentes, que os utilizam; ou que o Secretário de Estado da Saúde venha a público defender que os problemas actuais do SNS não se devem às cativações ou à simples irresponsabilidade do Governo, mas sim aos utentes, que teimam em adoecer, em frequentar hospitais e, maçada das maçadas, em agendar cirurgias. Como se não tivessem nada melhor para fazer.
(como é bom de ver, a culpa da falta de obstetras durante o Verão nos hospitais de Lisboa, mas também nos de Beja e de Portimão - a província não faz muitas manchetes - não se deve a nenhuma falha do Ministério da Saúde, mas sim a todas as mulheres que, malvadas, ousaram engravidar algures entre Novembro e Dezembro do ano passado)
Daqui até à filosofia vai um passo de bebé, desde que o bebé nasça no Outono ou na Primavera: se um serviço público abrir e ninguém estiver lá para tratar de alguma coisa, ela faz algum som? Julgo que o exercício funcionava melhor com a árvore e a floresta, mas essas, enfim, arderam em 2017 (e, lá está: se não fosse as árvores...). Fiquemos então com as repartições públicas, exemplo de imaterialismo que julgo não ter ocorrido a Berkeley.
Mais admirável do que a lógica só mesmo o descaramento. Mas esse será tudo menos imaterial.