O homem que sonhava ser pássaro
Um dia, Chuang Tzu sonhou ser uma borboleta, voando alegremente entre as flores do jardim, sem saber que era Tzu. Quando acordou subitamente, na pessoa que sempre imaginara ser, já não podia dizer com certeza se era um homem que tinha sonhado ser uma borboleta, ou uma borboleta sonhando que era um homem. Lembrei-me desta história famosa ao ver “Birdman”, um filme que retoma este paradoxo a partir de uma impressionante rede de referências: a “peça dentro da peça” de Hamlet, o “quadro dentro do quadro” de Malevich, o “filme dentro do filme” de “Fala com Ela”, questionando o sentido da representação ("ser si mesmo noutro"? ou “ser outro em si mesmo”?) e, em última instância, levantando o maior mistério de todos: o que diabo é a realidade?
Senão, vejamos: o filme conta a história de uma peça cujo personagem principal vive uma crise de identidade, pois perdeu o amor e o reconhecimento que antes usufruíra; tal é o drama vivido pela personagem do próprio filme, um actor anteriormente famoso e agora velho e esquecido, representado por Michael Keaton, um actor anteriormente famoso e agora velho e esquecido, num filme sobre o teatro, uma arte anteriormente famosa e agora velha e esquecida, que usa uma técnica ilusória (um falso plano-sequência) para nos questionar sobre a linha ténue que separa o real e o irreal, a fama e o esquecimento, a glória e o fracasso.
E afinal de contas, que linha é essa? Como saber, recordando Descartes e Philip Dick, se não estou preso num sonho que julgo ser real? Como posso efectivamente saber que este mundo não é uma ilusão de alguém, que este eu que julgo real não é afinal um sonho de mim próprio num outro mundo, numa outra época?
Aprendemos, desde cedo, a separar o mundo do “faz-de-conta” da “realidade”. Mas neste mundo de simulacros, de realidades virtuais, redes sociais, ídolos com pés de barro, o que é ilusão ou realidade? Não são poucos os dias em que olho pela janela e desejo, ansiosamente, que talvez eu seja afinal apenas um pássaro, esvoaçando alegremente sobre Central Park, que sonha ser este homem que vos escreve.