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Delito de Opinião

O Fim do Pai Natal (conto revolucionário infantil não aconselhável a crianças)

José António Abreu, 22.12.17

 

Capítulo 1

Injustiça

 

Notícias e tendências demoravam a chegar ao Pólo Norte, mas o Pai Natal sabia que podia vir a ter problemas. Frequentemente dizia à Mãe Natal: «A revolução bolchevique está a mudar muitas coisas. Mais tarde ou mais cedo, essas novas ideias vão chegar cá.» A Mãe Natal olhava-o distraída e, em tom de quem estava mais interessada em decidir o que fazer para o jantar, perguntava: «Por que é que haviam de se meter contigo? Forneces alegria a crianças espalhadas por quase todo o mundo. Quem é que pode levar isso a mal?» Ao mesmo tempo, abria a caixa da costura ou punha uma cafeteira ao lume. O Pai Natal dominava uma ligeira irritação, pensava que mais valia falar com Rodolfo do que com a mulher (o que por vezes fazia), e remetia-se a um silêncio preocupado. Quando tudo aconteceu, só ficou admirado por ter demorado tanto tempo.

Como seria de esperar, foi o duende barbudo admitido cinco meses antes e que rapidamente exigira a formação de uma comissão de trabalhadores quem primeiro se apercebeu do facto ao examinar os planos de produção. Bateu à porta do gabinete do Pai Natal e perguntou-lhe sem rodeios: «Por que é que as crianças ricas recebem brinquedos mais caros? Não deviam ser todos do mesmo preço? Ou até ao contrário: os brinquedos melhores para as crianças pobres, que as ricas já têm suficientes?»

Os olhos do Pai Natal, sentado atrás da grande secretária onde, por esta altura do ano, se empilhavam sempre enormes pilhas de papel com nomes, moradas, relatórios de comportamento e listas de brinquedos disponíveis, conseguiam ainda assim estar a um nível ligeiramente mais elevado do que os do duende barbudo, que permanecia em pé entre a secretária e a porta. Devido aos montes de papel, o Pai Natal quase nem lhe via a barba, parecida com a dele próprio mas totalmente preta. No entanto, via-lhe os olhos, e estes mostravam uma firmeza tão grande que o Pai Natal se sentiu de repente muito pequenino – mais pequeno do que o duende barbudo. Consciente de que chegara o momento, usou a resposta preparada durante anos: «Tentamos dar às crianças os brinquedos que elas pedem. É esse o nosso compromisso e é isso que faz a felicidade delas. É verdade que as crianças ricas pedem coisas mais caras, mas deveríamos desiludi-las? São apenas crianças.»

O Pai Natal testara aquele argumento na Mãe Natal várias vezes e ela sempre parecera achá-lo bastante sólido. Mais importante: experimentara-o também em Rodolfo, cujo nariz se iluminara por um instante, sinal inequívoco de admiração ou de alegria (ou de constipação, mas o Pai Natal escolhera sempre momentos em que Rodolfo andava de boa saúde). O duende barbudo, todavia, não pareceu impressionado (o Pai Natal sabia que não o devia ter contratado; sentira-o imediatamente após tê-lo feito) e disse que aquele não era um bom argumento; que, evidentemente, as crianças mais pobres pediam coisas mais baratas porque era aquilo que conheciam e que imaginavam ao seu alcance; que, ao fazer a vontade às crianças mais ricas, estas habituavam-se a ter todos os seus desejos satisfeitos e a conseguirem sempre tudo sem esforço, o que as transformava em adultos sem respeito pelos outros; que, sendo o Natal uma época do ano em que se procura transmitir um imagem de respeito, igualdade e paz, e procurando o Pai Natal transformar-se no símbolo desses ideais – aqui o duende acrescentou qualquer coisa sobre «o que, pelo menos numa fase intermédia, talvez seja útil, porque sempre retira protagonismo à Igreja» –, devia procurar corrigir as injustiças em vez de as reforçar; finalmente, que os tempos haviam mudado e que já era altura de essas mudanças chegarem ao Pólo Norte.

Enquanto o duende barbudo falava (o que sucedeu durante bastante tempo, embora tudo o que ele disse se encontre no parágrafo anterior), o Pai Natal procurava descobrir um modo de lhe dizer que não iria alterar regras que vinham funcionando tão bem há já dezenas de anos só para satisfazer os desejos revolucionários de um duende que – o Pai Natal já o percebera – gostava mais de falar do que de trabalhar. Incapaz de arranjar um argumento que fosse simultaneamente firme e amigável, permaneceu calado, olhando o duende barbudo nos olhos. Este acabou por ser forçado a perguntar: «Então? Vai alterar as regras este ano?»

«Não posso. É demasiado tarde.»

«Não é demasiado tarde. Os brinquedos ainda estão por fabricar.»

«Mas as encomendas de material têm de seguir nos próximos dias. Não há tempo para as alterar.»

«Não é preciso alterá-las. Quando muito, apenas corrigir quantidades. E depois refazer as listas de entrega, fazendo corresponder os brinquedos mais caros às crianças mais pobres.»

«Como se isso fosse fácil… Os brinquedos mais caros demoram mais tempo a produzir, até ao Natal já não há tempo. E também são mais caros. Não temos orçamento para alterar assim as quantidades.»

O duende barbudo ficou um instante em silêncio. Depois apontou para um cartaz na parede.

«Isso são tudo desculpas. O que você não quer é chatear a Coca-Cola. A sua fama disparou quando eles o começaram a apoiar. Quanto é que lhe pagam por ano?»

O Pai Natal sabia que estava em terreno cada vez mais perigoso. Para gente como o duende barbudo, a Coca-Cola era um símbolo de tudo o que ia mal no mundo.

«Isso não vem ao caso. A Coca-Cola é o nosso principal financiador, sim, e tem o direito de usar a nossa imagem. Mas isso não quer dizer que mandem em nós.»

Não era inteiramente verdade. O contrato estabelecia regras; qualquer alteração nas mesmas tinha de ser discutida entre ambas as partes e a Coca-Cola dispunha de um número incrivelmente elevado de advogados, que arranjavam sempre imensos problemas.

O duende barbudo disse: «Não acredito em si. Mas também não interessa. Vou convocar uma reunião da comissão de trabalhadores. E pode ter a certeza de que se tomarão medidas para alterar esta injustiça.»

Depois virou costas e saiu do gabinete. Foi o princípio do fim.

 

O capítulo 2 (de 4) será publicado amanhã às 10 horas e 56 minutos.

2 comentários

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    Anónimo 26.12.2017

    Tens toda a razão, e o Pai Natal também, para já não falar da Coca Cola.
    Uma criancinha do Burkina Faso, ou do Burundi, têm é que receber uma carcaçazinha, e já gozam.
    Para um filho de família rica europeia, uma consola Xbox 360, decorado com 11.520 cristais Swarovski, é uma porcaria, porque o que ele queria mesmo, era uma miniatura eléctrica de um Bentley Continental.
    Os miseráveis "bolcheviques" que se atrevem a dar opinião, que vão para o inferno (mas só depois da época natalícia de paz, amor, compreensão, generosidade...etc.)
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