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Delito de Opinião

O fim da Turquia secular.

Luís Menezes Leitão, 13.07.20

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Por muito que os livros nos revelem a situação de um país, a melhor forma de o conhecer é visitando-o. As minhas impressões sobre a Turquia resultavam do livro de Samuel Huntington, O choque das civilizações, que curiosamente a qualificava como um Estado dilacerado em termos civilizacionais, uma vez que tinha destruído todo o conhecimento que possuía, quando Ataturk determinou o uso do alfabeto latino em vez do árabe, impedindo as novas gerações de ter acesso à cultura turca antiga. O autor referia que o grande movimento histórico do final do séc. XX era o ressurgimento islâmico, mas deixava a Turquia de fora, devido à sua laicidade.

Visitei a Turquia em 2014 e o meu conhecimento sobre o país alterou-se completamente. Explicam-me que a alteração do alfabeto era irrelevante, uma vez que no início do séc. XX quase toda a população era analfabeta e o alfabeto latino adequa-se muito melhor à língua turca, pelo que facilitou a alfabetização. E explicam-me também que Ataturk sabia perfeitamente que a população turca era maioritariamente islâmica, pelo que deixou três instituições para salvar a laicidade do Estado: as Universidades, os Tribunais e o Exército. Seriam essas instituições que, após a sua morte, manteriam a Turquia laica.

Quando se entra em Santa Sofia em Istambul, fica-se maravilhado com a cúpula e com a recuperação dos frescos bizantinos, escondidos durante tanto tempo. Aprendemos, aliás, que o Império Bizantino, sobre o qual nos falavam no liceu, nunca tinha existido, pois foi sempre designado por Império Romano até ao seu derrube por Mehmet II em 1453, um drama tão grande para o Ocidente que a data ficou a marcar o fim da Idade Média. Mas Santa Sofia sobreviveu, tendo sido convertida em Mesquita, até que Ataturk a laicizou, convertendo-a num museu.

Ataturk fez o mesmo a outras Santas Sofias na Turquia, designadamente em Trabzon, que tentei visitar. Totalmente impossível, uma vez que tinha voltado a ser convertida em Mesquita. Apenas podemos espreitar à porta, estando as paredes interiores completamente cobertas por panos brancos que não nos deixam ver as pinturas. Apenas de uma porta lateral é possível ter um vislumbre dos magníficos frescos que os panos brancos tapam. O guia compreende a nossa desilusão, mas diz-nos para nos prepararmos pois, cedo ou tarde, o mesmo iria acontecer à Santa Sofia de Istambul: "A população islâmica não permite que um edifício consagrado como mesquita deixe de ser uma mesquita. Foi assim em Trabzon e vai ser assim em Istambul. Vai ser muito mau para o nosso turismo, mas é um movimento imparável". Na altura pensei que não fazia sentido essa previsão, até porque em Istambul existe ao lado de Santa Sofia a magnífica Mesquita Azul, mas pelos vistos enganei-me.

Em qualquer caso, isto significa que Erdogan acabou por destruir a herança de Ataturk. Depois de dominar todas as instituições que este tinha deixado para conservar a laicidade do Estado, destrói agora o principal símbolo internacional dessa laicidade. Santa Sofia pode continuar a ter o aspecto imponente de fora, mas o deslumbre que tínhamos ao entrar nela está definitivamente perdido.

2 comentários

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    Anónimo 13.07.2020

    Se o Luís Lavoura tivesse lido, o que está em causa não é quem reza dentro de Santa Sofia, mas os magníficos mosaicos bizantinos que lá existem e que eu gostaria de um dia mostrar à minha neta. Ou pensa que os muçulmanos irão rezar numa sala encimada com a virgem Maria com o menino Jesus ao colo?
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