O fim da geringonça
Parece que a "geringonça" termina. Talvez desabe agora. Ou talvez ainda sobreviva, algo desarranjada, por mais um ano, se o orçamento for aprovado in extremis. Ou, menos provável, se vier a governar sob a entidade "Duodécimos", com navegação de cabotagem feita de bolinas lei-a-lei. Mas, nesse caso, muito provavelmente não sobreviverá mais do que um ano.
Quando em 2015 o poder se estabeleceu nesta "geringonça" muitos clamaram contra, apontando a sua ilegitimidade. Porque não havia sido anunciada, porque o PS não ganhara as eleições. Ora Costa anunciara a sua disponibilidade para tal (dissera nunca aprovar um governo PSD/CDS minoritário, não ter disponibilidade para se coligar com a direita, e propunha-se como governante. Só não percebeu quem não quis. Ou quem é, apesar de ganhar a vida como comentador político, manifestamente incompetente). E, mais do que tudo, as eleições legislativas não são mais do que a constituição de um parlamento do qual deverá emanar um governo, monopartidário ou de coligação. E é até aconselhável que as coligações governamentais não sejam pré-definidas mas que nasçam de um parlamento eleito, com a correlação de forças (de número de deputados e de apoio eleitoral às propostas partidárias) estabelecidas de fresco. Ou seja, esta solução teve todo o cabimento, político e ético. Foi até uma boa lição sobre a democracia, num país onde eleitorado abúlico e imprensa distraída tendiam a pensar as eleições legislativas como um concurso para primeiro-ministro (de preferência entre comentadores televisivos mais bem-falantes e melhor apessoados).
O acordo de governação que surgiu (tantas vezes erradamente dito "coligação") foi logo descrito pelos seus adversários como uma "geringonça" (metáfora criada por Pulido Valente, se não me engano), qual coisa mal amanhada, prestes a desconjuntar-se. Mas de facto isso não correspondeu à verdade: o PS governa há seis anos com governos minoritários e, até agora, com relativa paz política (e, nisso, acalmia social, dada a placidez da imprensa e o silêncio sindical), e com sucessos eleitorais. Claro que isso implicou trabalho político (o olear constante da "geringonça"; a reparação das suas peças) mas tamanha continuidade mostra bem que o mecanismo não foi tão mal amanhado como o disseram.
O relevante é que os adeptos desta associação entre PS/PCP/"socialistas revolucionários" assumiram, com bonomia jubilosa e notório carinho, o termo "geringonça" para a nomear e definir. Isto mostra como esta solução recebeu não só adesão política mas também um afecto atribuído a todas as "geringonças" (antiguidades ou velharias) às quais o gosto dominante pequeno-burguês reconhece uma simpática "patine", nisso atribuindo-lhes o estatuto de "vintage", ou às suas reformulações ditas "retro". Nisso a nossa "geringonça", a por muitos tão esperada "maioria de esquerda", apareceu como uma revisitação à Frente Popular de León Blum, e para tal ambiente afectivo tão necessário foi o recurso ao discurso contra o fascismo. O qual foi sendo imputado contra todos os seus adversários, explícitos ou implícitos, desde a "nazi" Merkel (pré-crise dos refugiados do Mediterrâneo) a todos os "neo-liberais" nacionais que a ele eram associados, a maioria destes apenas espartilhados pelos termos de um acordo com Bretton Woods e a União Europeia, germinado por uma governação socialista. Assim se reforçou o tópico de um vetusto "anti-fascismo" que caucionava esta governação, como se areando a "geringonça", e sempre alimentando-se de algumas, escassas, evoluções da extrema-direita em países congéneres e do breve desvario trumpiano.
Agora, neste estrebuchar da "geringonça", com a "patine" riscada e tantas peças danificadas, e sem que uma cópia (porventura chinesa) de aparência "retro" a possa substituir, será de pensar como esta maquineta, este moinho de café manual, por mais simpático que seja, por mais que nos alente através de memórias muito selectivas de outros tempos nossos avoengos, não é a solução adequada para este nosso quoditiano. Ela foi funcionando num contexto peculiar: a remodelação temporária das políticas económico-financeiras internacionais, neste efectivo "perdão de dívida" que a real "reestruturação da dívida" promovida pelo BCE, feito qual "Clube de Paris", desenvolveu nestes últimos anos (sei que os economistas contestarão isto, mas isso é porque pensam em "economês", linguajar ainda mais incompetente e aldrabão do que o famigerado "eduquês").
Mas há muito, décadas mesmo, que o país estagnou. Não se desenvolve. Empobrece e envelhece. Não é miserável, não está na cauda do mundo, como alguns escatológicos ululam. Não tem o maior Estado do mundo, nem o mais despesista, não é o mais improdutivo, não tem a maior e mais injusta carga fiscal, como algumas claques entoam. Nem é o mais desempregado ou emigrado, como tantos desopinadores aludem. Mas esta via de organização social e económica, por mais apelativa que seja a muitos que, convictamente, defendem a "justiça social", a "equidade" e os "direitos individuais e colectivos", está em falência face aos constrangimentos internacionais. E às ineficiências (e algumas malevolências) internas. O país precisa de reformas, e algumas serão dolorosas. E acima de tudo precisa de se libertar deste estatismo cultural, perceber que, como diria a dra. Graça Freitas, a actual máscara estatal dá uma "sensação de falsa segurança".
Para isso o país precisa de um novo poder. Não de uma outra "geringonça", nem de uma "maquineta", mas sim de um "sistema operativo" de centro-direita. Sem "patine" "retro"(gada). E também sem "memes" de "unicórnios". Mas que seja competente. E assim não se restringindo a outra cabotagem, à mercê da vontade de um seu eleitorado carregado de escorbuto e nisso ansioso por aguadas benfazejas. É preciso fazer reformas, sectoriais, indutoras de desenvolvimento ainda que sejam conjuntural e até afectivamente dolorosas.
Para esse passo, para esse "sistema operativo" de centro-direita, muitos discutem agora qual a sua linha de demarcação, se a abrangência deve ou não incluir o partido do prof. Ventura. A questão não é essa. Neste regime nunca houve extrema-direita, nem após a descolonização o mítico general Kaúlza de Arriaga conseguiu animar o seu MIRN, nem mesmo uma "direita profunda" conseguiu germinar na deriva do PDC (que estrebuchou sob o folclórico Silva Resende). Este partido de agora é um mero epifenómeno, de forma algo serôdia acalentado por fenómenos aparentados em alguns países vizinhos, e muitíssimo reforçado pela necessidade de exposição pública da recente criatura racialista que o PS instituiu para minar o BE. Goste-se ou não do PCP será importante reparar como dirime ele, com algum menosprezo e sagaz silêncio, aquele fenómeno de "meia-estação". Pois os reais problemas e hipotéticas soluções estão alhures.
As linhas de demarcação para os constituintes deste "sistema operativo" devem traçar-se com outros critérios. A social-democracia (parcial fundamento do PSD), o liberalismo (presente no PSD; fonte da IL; presente no CDS) e a democracia-cristã (fonte do CDS) foram nos países actualmente nossos congéneres - ou seja, e para facilitar, a UE antes do alargamento para 27 - fontes de desenvolvimento humano, crescimento económico, democraticidade social e política. Alguns poderão recordar as particularidades (tétricas) da democracia-cristã italiana, e terão razão sobre essa... excepcionalidade. Outros logo se centram no extremismo de Thatcher - o qual dá sempre jeito para demonizar o desenvolvimentista liberalismo -, mas nunca o articulam com a crise pós-imperial e pós-industrial britânica daquele tempo. E nisso escondem, alguns por ignorância e outros por malevolência interesseira, que são as enormes crises que conduzem a soluções extremas.
Ou seja, a abrangência de um futuro e desejável poder deve congregar essa mescla de inspiração europeia e desenvolvimentista. E nisso arredar o conservadorismo. Este, no país, é muito uma questão de atitude que perpassa vários partidos. Não se trata do conservadorismo de "costumes", que muito clama nestas matérias "identitárias" com que alguma esquerda actual aliena o debate público. Mas de posturas renitentes às alterações socioeconómicas, muitas vezes sob roupagens patrioteiras anti-europeístas. Uma outra exclusão necessária é a dos radicais liberais. De facto não sei a efectiva influência que estes têm nos partidos de centro e direita, deles apenas conheço década e meia de algumas proclamações de rede social e jornal. Neles é reconhecível um radicalismo similar, ou mesmo maior, do que o que se encontra em alguns sectores da coligação de socialistas revolucionários que vem apoiando este governo.
Desenvolver o país é apostar em vias que poderão ser sectorial e conjuntalmente dolorosas - é isso a política benfazeja, privilegiar sectores em função do bem comum, a tal "justiça social" equitativa desenvolvimentista. Mas o radicalismo liberal, com evidentes traços revanchistas de anti-estatismo desbragado, e algum conservadorismo com tiques miguelistas tendem ao menosprezo sociológico, ao aventar do (necessário) extermínio dos mexilhões, nós-povo. E se é para ter um massacre de mexilhões eu preferirei votar no José Sócrates...
Enfim, como fazer reformas conjunturalmente dolorosas mantendo a justiça social desenvolvimentista? Se eu soubesse responder não estaria a blogar mas sim a fazer um relatório com as directrizes necessárias. E vendê-lo-ia. Mas estou certo que tal não convoca um pensamento mágico, não será uma tarefa alquímica. Convoca um saber humanístico - não no pobre sentido de "humanitário" mas sim no original de "sábio". Um saber que conheça o passado, das vias que têm vindo a ser tentadas e procurando adequá-las em função não de uma "república perfeita" mas sim uma melhoria gradual. E isso implica escaparmos às pobres cliques partidárias que vêm gerindo os partidos. Um pouco à medida do que mesmo agora Carlos Moedas aparenta ter conseguido fazer em Lisboa. Mas onde estão os "senadores" e as "câmaras corporativas" dos partidos? Que documentos apresentando reflexões sectoriais e abrangentes têm os partidos clássicos vindo a apresentar?
Enfim, para um em suma apenas me repito: se for para eleger revanchistas exterminadores de mexilhões então irei votar no José Sócrates. E se for para promover apparitchiki das concelhias? No dia do voto irei ao Lidl reabastecer-me de Queen Margot. E brindarei a nós-mexilhões e aos "direitos adquiridos", às "conquistas de Abril".