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Delito de Opinião

O fantasma das caixas

José Meireles Graça, 09.06.21

Num artigo gabado por amigos meus Daniel Oliveira toma, e bem, como natural, inevitável e provavelmente desejável a inovação da supressão de caixas num estabelecimento do Continente.

Quando Daniel daniela, fico de pé atrás. Porque o moço, que aliás estimo desde os tempos longínquos em que perorava no Arrastão, prestigiado blogue do qual eu era, como comentador, um dos poucos reaccionários residentes, costuma ter muita razão à primeira vista, e bastante menos à segunda.

Proponho-me respigar algumas frases, que ornarei com os pertinentes comentários, e, no fim, como nas boas parábolas, tirarei uma moral. Assim:

E é por isso que, quando um empresário me diz, para parecer um bom samaritano, que ao contrário de mim criou imensos empregos, só consigo sorrir. Um empresário cria tantos empregos como um trabalhador que mantém a empresa sustentável e produtiva.

O que mantém a empresa sustentável e produtiva são os clientes. A satisfação deles, e por conseguinte a sua fidelidade, depende da qualidade das escolhas (estratégicas, tácticas, comerciais, de diferenciação e inúmeras outras) que o empresário fizer. Estas escolhas implicam a do pessoal a contratar, bem como a supervisão do seu desempenho. Mas nada disto autoriza afirmar que o contributo de um ou vários trabalhadores, por indispensável e meritório que seja, tenha a mesma relevância.

O empresário diz isto porque quer ganhar superioridade moral num debate que não é moral.

Dany (a familiaridade do trato não vem de qualquer superioridade moral ou outra minha, é antes uma manifestação de apreço), reconheço que não faltam empresários a usar esse argumento. Mas o que ele costuma querer dizer, mesmo que nem sempre articuladamente, é isto: toda a gente se toma como gestor e explica com inexcedível competência as maravilhas de crescimento que seriam engendradas por empresários com formação e amor ao risco, em vez dos tristes trastes que os daniéis deste mundo querem acabrunhar com impostos, regras, regulamentos, interditos e pedras ao pescoço. Mas gente com formação é o que mais há; e com competências excelsas que só precisam de ser postas à prova, também. Donde, a pergunta quer dizer isto: por que razão os que julgam saber como se faz, incluindo trabalhadores, não fazem? Quem sabe se, se fizessem, não mudariam de opinião?

O resto do texto está pontilhado aqui e ali com outras considerações discutíveis que não vou escabichar por serem menores e não querer dar a impressão que é tudo para deitar fora, porque não é. Daí que salte para a conclusão:

Para isso, é preciso uma política fiscal que desvie o dinheiro que apenas serviria para concentrar ainda mais a riqueza nuns quantos (é o que está a acontecer) e desemprego noutros para reconverter trabalhadores para trabalho mais qualificado, para reduzir horários ou criar um novo mercado de trabalho social e público. A questão não é como travar a tecnologia. É como pô-la ao serviço de todos - e não apenas de alguns. E isso cabe à política.

Não faltam estudos sábios a demonstrar que, em Portugal, capital sob a forma de reservas não há – há quarenta anos que o capital vem sendo consistentemente destruído, sendo substituído por dívida, pública e privada. E que, portanto, é necessário atrair investimento estrangeiro porque as inundações periódicas de fundos da UE não chegam. Segundo Daniel, pelos vistos, há. E o que é preciso é, pela punção fiscal, ir pilhar quem ainda o tenha, com o meritório propósito de o alocar a fins de grande nobreza e utilidade.

Esses fins são a formação para trabalho mais qualificado, a redução de horários de trabalho e um novo mercado pérépépé.

Sucede que Portugal exporta, ao contrário do que dantes sucedia, trabalho qualificado, de tal forma que as gerações actuais não são ingénuas ao ponto de acreditarem que vão encontrar colocação no nosso terrunho – têm de dar corda aos sapatos e ir para o estrangeiro. Vozes cépticas chamam há muito a atenção para isto e para o facto de que, sem crescimento económico, investir nos jovens para os ver serem forçados a expatriarem-se é investir em formação para beneficiar outros países. Não é que aumentar os níveis de formação académica seja mau – é necessário, mas não suficiente. Infelizmente, a receita do crescimento nunca depende de um só factor.

De formação profissional nem é bom falar, que desde praticamente o início da adesão à CEE têm sido enterrados incontáveis milhões nessa galinha dos ovos de ouro para os sortudos que dela beneficiam – na realidade para disfarçar desemprego, e alimentar escolas de inúteis que fingem que ensinam alunos que fingem que aprendem. De resto, como é que Daniel sabe quais são as formações que permitiriam aos novos desempregados encontrar colocação alternativa? Na minha longa carreira profissional de pequeno industrial tropecei muitas vezes em necessidades de formação que quase nunca poderiam ser satisfeitas com a oferta que existia – esta é quase sempre, se fora do ensino oficial, e com excepção do que esteja ligado a informática, de papel, lápis e treta.

A redução dos horários de trabalho talvez venha a ser necessária. Porém, os países que empreenderem esse caminho fá-lo-ão porque podem. Candeia que vai à frente alumia duas vezes, mas só se estiver acesa. Quem tem uma candeia apagada, como nós, faz bem em andar atrás, para ver onde põe os pés. Daniel, que é uma pessoa arguta, entenderá a alegoria.

O novo mercado de trabalho social e público não sei bem o que seja, mas não é difícil intuir que se trata de mais uma extensão da sombra do Estado e, portanto, despesa pública. A sério, a que há ainda não chega?

Uma nota final: há um pano de fundo para este tipo de artigos e o intervencionismo na vida das empresas, e esse não é apenas a simples ignorância e falta de experiência no terreno. É que Daniel Oliveira acha que não há nenhuma diferença de qualidade intrínseca entre a gestão pública e a privada, e acha isso com base em alguns casos de pública bem sucedida, e muitos de gestão privada que o não foi. Mas mesmo sem entrar em esgrimas sobre o assunto, que é aliás uma pedra de toque entre convicções de esquerda, de um lado, e esclarecidas, do outro, faço uma pergunta retórica: que é que sucede quando se substituem todos os empresários privados por gestores nomeados pelo Poder, mesmo que estejam albardados de qualificações, ou tenham larga experiência, ou tenham sido escolhidos pelos trabalhadores?

O bom do Daniel dirá decerto que no segundo caso falta o mercado, e portanto o mecanismo de selecção. Porém, o mercado também funciona para o empreendedorismo, o que quer dizer que se o Poder não sabe gerir também não sabe empreender. De modo que deixar em paz os empresários que existem talvez não seja má ideia, ao menos enquanto não surgirem outros melhores. E, já agora, criar condições para que esses melhores apareçam.

Como? Dou uma dica: não é a garantir-lhes que, se tiverem sucesso, serão esbulhados.

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