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Delito de Opinião

O eterno movimento

Paulo Sousa, 09.01.23

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Uma corrida para esticar as pernas numa manhã de Janeiro, entre duas chuvadas.

Nos auscultadores, um programa de rádio fez referência à morte do radialista António Cartaxo. A rádio está de luto. Aos arquivos foram buscar um excerto da sua voz sorridente, desejando a todos, votos de bom ano novo. A gravação é de 2016.

Quarenta anos de rádio. Quarenta anos à frente do microfone ao ponto de, é fácil imaginar, o próprio poder confundir o “eu” com o “ofício”, o que é algo que está sempre a acontecer.

Que bela homenagem a de Maria Flor Pedroso, na rádio pública, que seria o ponto de encontro de ambos.

E como é que podemos homenagear aqueles que partem, que não eram radialistas, e que não podemos recuperar, relembrar, trazer à vida, pelo carregar dum botão?

O chão continua a fugir-me debaixo dos pés. Encosta abaixo, as ervas molhadas tentam arrefecer-me as canelas que, indiferentes, continuam a avançar. As frias cores do Inverno conduzem a memória nostálgica das perdas que já todos tivemos. O arrepio causado pela música escolhida para a homenagem radiofónica rima com o castanho das folhas mortas que atapetam o estreito carreiro onde, entretanto, cheguei. Os espinhos das silvas insistem em gravar algumas lembranças na minha pele, mas tembém elas serão temporárias e, por isso, também passageiras. Muito mais passageiras do que quarenta anos de um ofício, e que mesmo sendo quarenta anos, são também passageiros. Tão passageiros, como passageira é a vida.

Como é que podemos homenagear aqueles que partem, e que um dia desaparecerão no esquecimento da nossa partida?

Se a própria vida é efémera, então até um efémero subir do calcanhar, que se afasta do chão molhado, das raízes de um carvalho centenário, despido pelo Outono que já lá vai, pode ser uma homenagem aos que partem. O movimento é a negação do fim e é nesse movimento que viajam as memórias dos que não podemos homenagear de nenhuma outra forma.

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